
CHICO XAVIER E O "FUNK CARIOCA" - Mostrar pobres sorrindo é uma boa maneira para silenciar as esquerdas.
Expressões de um Brasil profundamente conservador, o "espiritismo" brasileiro e o "funk carioca", embora atuem em direções morais aparentemente opostas - a religião segue uma "limpidez" na conduta e o ritmo, uma libertação dos instintos - , são iguais no assédio feito às esquerdas para evitar que fossem, destas, vítimas de alguma investigação jornalística mais séria.
Tanto um fenômeno quanto outro têm o mesmo DNA midiático, a Rede Globo de Televisão, mas com permeabilidade em outros veículos da mídia hegemônica, como SBT, Bandeirantes, Folha de São Paulo, Estadão e Grupo Abril. O "médium" Francisco Cândido Xavier e o "funk" não são fenômenos a serem considerados alternativos ao poder midiático, porque na verdade se desenvolveram dentro de um sistema de valores comandado pela mídia hegemônica durante a ditadura militar.
Poucas páginas na Internet alertam isso. O silêncio da mídia alternativa brasileira é quase sepulcral. Quando surgem comentários, ou são de uma complacência quase cúmplice, ou são de um questionamento por demais medroso ou cauteloso. A mídia de esquerda, capaz de investigar quase tudo na vida, pela liberdade e independência com que atuam nas suas coberturas, sem um suporte empresarial ou publicitário que pasteurizasse suas pautas e abordagens, de repente brocha quando se trata do "médium" ou do "funk". Por que será?
É simples. Duas estratégias foram usadas pelo "funk" e por outros fenômenos popularescos culturais, inclusive o "espiritismo" de Chico Xavier, este com um forte apelo populista-conservador, para aliciar as esquerdas: uma é evitar explorar uma retórica raivosa e agressiva, outra é associar sua imagem ao aparato de pessoas pobres sorrindo.
POBRES SORRIDENTES... NÃO SERIAM DOMESTICADOS?
O discurso não-raivoso era adotado no sentido de acompanhar o discurso do então presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, que explorava o lema "Lulinha Paz e Amor". Com isso, o discurso que evitasse no máximo a linguagem hidrófoba e adotasse uma mensagem aparente de esperança e otimismo passa a ser visto pelas esquerdas mais ingênuas como "progressista" e, por associação, mesmo muita gente boa acaba acreditando.
Uma religião como o "espiritismo" brasileiro é tão reacionária, gananciosa e arrivista quanto as seitas evangélicas de linha neopentecostal, como a Igreja Universal do Reino de Deus, a Assembleia de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus. Mas o que faz os "espíritas" serem aceitos por setores das esquerdas é que a retórica adotada é desprovida de toda agressividade, substituída por uma retórica suave, agradável e otimista.
Os funkeiros também evitam o discurso hidrófobo, quando textos produzidos por seus representantes ou adeptos mais influentes adotam um tom mais positivo e esperançoso, evitando repetir a raiva manifesta por pessoas como o roqueiro Roger Rocha Moreira, do Ultraje a Rigor, em seus comentários sobre os diversos âmbitos da vida.
Outra estratégia é mostrar pobres sorridentes. Qualquer um, da direita brasileira, que evitar pôr veneno na língua e mostrar um pobre sorridente, ainda que este seja tratado como se fosse um cachorrinho doméstico, é considerado "progressista" por tamanho aparato.
E aí Chico Xavier penetra "facim, facim" no gosto das esquerdas. E isso apesar de suas ideias de um conservadorismo arrepiante, que defendem tudo de retrógrado: trabalho exaustivo, servidão, conformação com a própria desgraça, "cura gay" (não é fake news; Chico Xavier defendia ideias análogas a esse princípio conservador, antes de ter esse nome), "flexibilização" dos acordos trabalhistas etc.
E o "funk" adotou pelo aparato "libertário" que supostamente colocava o ritmo como "rebelião popular", criando um verniz de "mobilização popular" organizada por ambiciosos empresários e DJs do ritmo, que buscavam se promover às custas de tais aparências e evitar que fossem investigados pelas esquerdas.

SAULO GOMES ENTREVISTANDO CHICO XAVIER.
EVITAR O "VAZA FUNK" E O "VAZA MÉDIUM"
O jornalismo investigativo, no Brasil, raramente comete ousadias, sendo um trabalho marcado por exemplos honestos e corajosos, porém dentro de uma pauta sem muitas controvérsias, apesar de eventuais riscos. Raramente há trabalhos de grande envergadura,que façam frente ao que a equipe original de Realidade havia feito.
Hoje morreu, aos 91 anos, de infarto em Ribeirão Preto, interior paulista, o repórter Saulo Gomes, competente jornalista investigativo, mas de uma trajetória sem muitas ousadias. Por sinal, a amizade que passou a ter com Chico Xavier e que, neste caso, fez o repórter investigativo dar lugar a um propagandista religioso, mas isso abriu precedentes para uma tendência que faz a imprensa de hoje manter silêncio em torno do "médium".
Neste sentido, investigativo foi mesmo Attila Paes Barreto. Inverso a Saulo Gomes, Attila lançou um título seminal, O Enigma Chico Xavier Posto a Clara Luz do Dia, em 1944, um documento importante para entender o outro lado do "médium", que hoje nenhum jornalista investigativo tem coragem de reproduzir. Lamentavelmente o livro tornou-se uma grande raridade.
Depois de Attila, somente o nosso conhecido repórter do Globo Rural, José Hamilton Ribeiro, que amputou uma perna ao ser ferido por um explosivo quando cobria matéria da Guerra do Vietnã para a revista Realidade, cometeu ousadia contra Chico Xavier. Também na Realidade, em 1971, Hamilton Ribeiro propôs dois nomes, um de uma pessoa inexistente, e outro de uma pessoa doente, mas ainda viva na ocasião, para Chico Xavier "psicografar" e ele "psicografou". O fato da enferma ter falecido poucos dias após a tarefa não permite legitimar a suposta psicografia, pois ela era viva na ocasião.
No caso do "funk", o marco do jornalismo investigativo parou no caso Tim Lopes, repórter do Fantástico que tinha um quadro de matérias populares, em 2002, quando, ao fazer cobertura sobre casos de exploração sexual de adolescentes nos "bailes funk", foi sequestrado e morto por uma quadrilha de traficantes.
Desde então, passou a reinar um silêncio sepulcral nas esquerdas em relação a matérias investigativas sobre o "funk". Textos contra o ritmo passaram a ser, estranhamente, um "privilégio" de raivosos direitistas, que não compartilhavam do paternalismo que setores mais flexíveis da direita adotam em favor do "funk", que as classes conservadoras aceitam a título de um entretenimento anestesiante dentro de um contexto de imbecilização social: para as elites, é melhor um pobre rebolando o "funk" do que lutando pela reforma agrária ou em defesa da Petrobras.
Em ambos os casos, a imprensa investigativa se calou. Fechou suas velhas máquinas de escrever. Tampou suas canetas. Desligou os computadores. Rasgou rascunhos de algo que seria feito. O silêncio aparece quando se trata de um funkeiro rebolando ou vociferando e quando surge a imagem de Chico Xavier, sobretudo em jardins floridos ou em céus azulados, de dar inveja a Damares Alves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro, que falou que na infância "viu Jesus surgindo num pé de goiabeira".
E o pior é que são adultos vendo Chico Xavier surgir no brochar de uma flor. Damares Alves foi ridicularizada porque era criança quando viu Jesus na goiabeira. É o Brasil ficando mais patético, numa doença que contagia até pessoas que se dizem possuir algum esclarecimento, mas que precisam fazer um verdadeiro Scan Disk em suas consciências para ver se não lhes resta, numa coleção de lucidez, algum entulho de absurdo escondido por aí.
A mídia de esquerda não quer investigar. Sobre o "funk", seus partidários falam a respeito da sugestão de investigar o "funk": "isso é cobrança de gente elitista". Sobre Chico Xavier, falam que é "crueldade investigar o passado de um homem de bem". E o mais absurdo é que não só a "esquerda Namastê", mas também a "esquerda não tão Namastê assim", que mantém-se no capricho de recusar a investigar a vida de um deturpador do Espiritismo e autor de obras literárias fake.
Claro que não é só a esquerda que faz jornalismo investigativo. Na verdade, ele surgiu ideologicamente neutro, mas se tornou progressista de esquerda quando a mídia hegemônica passou a contaminar o jornalismo por interesses comerciais e ideológicos, defendendo projetos políticos neoliberais e moldando seus interesses às demandas das grandes corporações, incluindo as da própria mídia.
Apesar dos trabalhos de Glenn Greenwald, jornalista estadunidense radicado no Brasil - claro, é necessário alguém de fora para despertar os brasileiros de eventuais sonambulismos sócio-culturais - , sobre os arrepiantes bastidores da Operação Lava Jato, na série do The Intercept intitulada "Vaza Jato", não teremos "Vaza Funk" nem "Vaza Médium" para acompanhar a tendência de desmascarar outros pretensos heróis do cenário sócio-cultural conservador brasileiro.
Dessa forma, com o silêncio dos jornalistas em relação a Chico Xavier e o "espiritismo" brasileiro e ao "funk", teremos que aturar por muito tempo Valesca Popozuda sendo considerada "o maior expoente do feminismo brasileiro", mesmo cumprindo de maneira servil todo o roteiro machista de objetificação sexual, e teremos que aturar tratarem obras fake creditadas a Humberto de Campos como se fossem "autênticas", só porque trazem mensagens religiosas. O Brasil precisa muito aprender a sair das suas ilusões. Ilusão não é cláusula pétrea.
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