
O internauta Célio Albuquerque Neiva, "de algum lugar" do Estado do Rio de Janeiro - ele tem consciência de que quer evitar incômodos diversos - , nos pediu para publicar uma carta na qual ele fica abismado com uma série de absurdos que acontecem na vida. Vamos lá:
Prezados amigos,
Fico assustado e um tanto abobalhado diante dessa tragicomédia a que se transformou o Brasil. Ver as pessoas ditas "normais" elegendo um sujeito como Jair Bolsonaro mostra o quanto as pessoas estão tomadas de um moralismo tóxico que, entre tantos absurdos, encara a Morte apenas como um privilégio de pessoas admiráveis e até especiais.
Cara, na boa, você acha mesmo que um feminicida, que mata a mulher depois de acumular tensões em sua mente e corpo, que depois do crime sofre pressões emocionais graves, que abalam o organismo, e ainda há casos de feminicidas que no passado usaram cocaína, fumaram demais, se embriagaram e ainda ingerem um coquetel de remédios tarja-preta, e o pessoal acredita que gente assim chega aos 80 anos virando youtuber igualzinho ao dos novos que aparecem nos últimos anos?
Paciência. Se o tal feminicida de 40, 50 anos sofreu infarto fulminante e o moralista padrão das redes sociais teve um piti, porque achava que o defunto estava "reconstruindo sua vida" - e isso depois de destruir a vida de sua vítima - , como se fosse impossível gente assim não pudesse morrer pelas pressões emocionais violentas contra sua saúde, é melhor aceitar.
Se o pessoal se incomoda quando se fala que feminicidas têm elevado risco de infarto fulminante e AVC, então esse pessoal precisa procurar um analista. Só porque tivemos figurinista jovem e alegre morrendo de infarto e gente boa como Luke Perry e Jorge Fernando morrendo de AVC, não é por isso que vamos achar que infartos e AVCs passaram a ser doenças de gente zen, pessoas calminhas. Aquele feminicida bombado que matou a namorada também pode morrer jovem sofrendo AVC.
Gente, o pessoal anda vendo WhatsApp demais! É muito moralismo tóxico, muita mania de bancar o intelectual por nada, justificando os absurdos que existem na vida, nesse Brasil idiotizado culturalmente, e que até agora mantém Jair Bolsonaro no poder. Perto dele, o presidente chileno Sebastian Piñera era um gentleman legalista e os chilenos vivem melhor que os brasileiros, mas mesmo assim houve uma passeata-monstro no centro de Santiago que assustou o presidente, que recuou no toque de recolher e em algumas medidas nefastas de governo.
E aqui? Num Brasil em que o obituário do Wikipedia precisa ser fofo como a lista do Prêmio Nobel da Paz, mesmo quando é impossível fugir da realidade de que os velhos e famosíssimos feminicidas, um dia - talvez daqui a algumas horas, mesmo - não serão mais do que um monte de cinzas espalhados por algum canto, e não youtubers da terceira idade fazendo tutorial de honra machista, as pessoas precisam sair das nuvens do seus smartphones.
Aqui no Grande Rio de Janeiro, até a cultura do rock, só para mencionar um antigo ritmo musical antes associado à rebeldia e à mobilização social, anda brochando. Tínhamos uma rádio de rock de primeira, a Fluminense FM, mas hoje a cultura rock está entregue a uma rádio-lixo como Rádio Cidade, cujos ouvintes são carneirinhos a ponto de aceitar qualquer coisa, de programinha de futebol a besteirol sem qualquer relação com o rock.
Se a "melhor (sic) rádio rock do Rio de Janeiro" tem como principal locutor um radialista pop como Demmy Morales - pessoalmente, não tenho nada contra ele, mas ele não é ninguém do rock - , então a coisa está grave. Acho que o Brasil está brega demais a ponto de acharmos que o melhor canal de divulgação da cultura rock é uma FM canastrona, um reles vitrolão roqueiro diante de uma grade de programação nada roqueira e mais voltada para o padrão médio do público das Jovem Pan da vida.
Mas é o Rio de Janeiro do "funk", que vende a falsa imagem de vanguarda só porque leva pau da crítica musical. O ritmo é imprestável, mesmo, transforma em gourmet o machismo, a erotização das adolescentes, a objetificação da mulher e vem os caras fazendo vitimismo, alegando serem "alvos de preconceito".
Diferente do que originalmente conhecíamos como funk, que tinha orquestras numerosas e sempre havia a presença de instrumentistas e cantores que tinham que ser bons e tocar e cantar dentro do tom - imagine se um vocalista de apoio ou um músico de James Brown errasse no tom, levaria bronca do mestre soul imediatamente - , o tal "funk brasileiro" é um festival de cantores ruins, uma batida única usada de dez em dez anos para vários interpretes e uma temática imbecilizante.
Mas aí até nossas esquerdas, um tanto ingênuas, que aceitam qualquer um que apareça ao lado de um pobre sorridente (ainda que domesticado e tratado como um animal subserviente), acolhem o "funk brasileiro" como se isso trouxesse a descoberta da pólvora para a Revolução Socialista. Não é difícil imaginar por que nossos esquerdistas perderam o protagonismo político em 2015-2016 entregando aos golpistas a chave do poder político.
Aliás, é muito estranha a postura das esquerdas identitárias. Elas gostam tanto de funkeiros quanto de Chico Xavier, o "médium" reaça mais querido dos esquerdistas. Houve quem chamasse ele de marxista, não é mesmo? Quanta ingenuidade! Só porque ele apareceu passando a mão na cabeça de crianças pobres as esquerdas passam o pano na cabeça - sob peruca ou boné - do "médium" que mais defendeu a ditadura militar.
O problema é que, enquanto os funkeiros estão associados a um imaginário que impulsiona as esquerdas identitárias a defender o aborto, o "pacifista" Chico Xavier, erroneamente tratado como "alma-gêmea do ex-presidente Lula" - na verdade, os dois sempre foram antagonistas - , sempre foi radicalmente contra o aborto, mesmo em casos de estupro, a ponto de preferir que a estuprada negocie a guarda do filho com o estuprador.
Nosso Espiritismo já é surreal, pois há muito ele traiu os ensinamentos de Allan Kardec e mesmo assim nenhuma alma viva consegue enxergar isso. Nossos maiores traidores, em vez de serem considerados inimigos internos, por terem desfigurado vergonhosamente a doutrina em prol de uma "catolicização" irresponsavelmente medieval, eles são considerados "mais fiéis discípulos". Os espíritas brasileiros traem mais do que Judas Iscariotes, mas eles sempre são mantidos em boas contas, por conta de mensagens ridículas, porém muito agradáveis.
É tudo isso que faz com que o Brasil se mergulhe em absurdos que contaminam até as chamadas forças progressistas. E fico assustado como o Brasil passa a ser um laboratório real-life para tudo aquilo que antes acreditavam ser apenas uma ficção nas obras de Franz Kafka, Salvador Dali, Luís Buñuel ou mesmo no "festival de besteiras" de Stanislaw Ponte Preta. Ver que existe gente no Brasil brigando com a realidade para salvar seus interesses e convicções - e não é pouca gente, não - é de arrancar os cabelos de qualquer careca.
Dá vontade de fazer um vídeo com os mortos admiráveis de cada ano usando aqueles fundos musicais dos vídeos de gatinhos fofinhos. Embora também morre quem atira, para todo efeito feminicidas que fumam e se drogam demais, quando chegam à velhice, viram youtubers saudáveis. Ainda que, em verdade, esses feminicidas não passem de um monte de cinzas espalhados pelo chão.
Abraços a todos neste Brasil cheio de surrealismos.
Célio".
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