Delícia promover a reputação supostamente inabalável de um deturpador da Doutrina Espírita como Francisco Cândido Xavier. As Organizações Globo (Rede Globo, O Globo, Época, Globo News) é propriedade dos irmãos Marinho, que estão no grupo seleto dos oito brasileiros mais ricos do mundo.
Numa lista que inclui nada menos do que três sócios da Ambev, uma das maiores empresas fabricantes de cerveja no Brasil, os irmãos João Roberto, José Roberto e Roberto Irineu, filhos do "lendário" Roberto Marinho, somam, juntos, cerca de R$ 41,8 bilhões, cerca de um sétimo da fortuna total dos oito maiores bilionários do Brasil: R$ 285,8 bilhões.
Sabe-se que a Rede Globo foi a maior propagandista de Chico Xavier e outros deturpadores da Doutrina Espírita no Brasil. As Organizações Globo superaram a antiga animosidade em relação ao anti-médium e resolveram reinventar seu mito religioso, baseado no que o inglês Malcolm Muggeridge fez com Madre Teresa de Calcutá.
Para entender esta história, vamos voltar ao tempo. As relações de Chico Xavier com as Organizações Globo tiveram três fases. A primeira, a de nível sensacionalista, quando o "médium" era visto como uma figura pitoresca, um católico paranormal que dizia falar com os mortos.
É desta fase a publicação, em 1935, de uma foto com Chico Xavier olhando de frente, que mostra um semblante bastante assustador e pesado. Dizem que ele estava "incorporando" alguém. A energia pesada e assustadora contradiz com a imagem "purificada" que muitos têm do "bondoso médium".
Mais tarde, veio a segunda fase, a fase da animosidade. Nela, pelo fato de católicos tradicionais e ortodoxos terem colunas no jornal O Globo, a empresa de Roberto Marinho passou a reagir de maneira hostil a Chico Xavier, chegando mesmo a revelar as denúncias do sobrinho Amauri Xavier, misteriosamente falecido, possivelmente por queima de arquivo.
Não que Chico Xavier fosse um reformista da Igreja Católica. Muito pelo contrário. Em relação às crenças e hábitos católicos, Chico Xavier era medieval de tão ortodoxo, e não é de surpreender que um dos colunistas de O Globo nos anos 1950, Alceu Amoroso Lima, católico do Centro Dom Vital, ter passado a fazer oposição à ditadura militar depois do golpe de 1964, enquanto o "moderno" Chico Xavier ainda a defendia.
Alceu, também conhecido como Tristão de Ataíde (ou Tristão de Athayde), defendeu o golpe de 1964 como todo conservador que se indignava com o governo João Goulart, mas reviu seus valores quando percebeu o império da arbitrariedade que representou o regime dos generais e passou a fazer oposição e defender a volta da democracia.
Já Chico Xavier, que chegou a deslumbrar setores das esquerdas brasileiras, iludidos com o verniz de "humildade" que cercava sua pessoa, defendeu aberta e convictamente a ditadura militar, com suas próprias palavras, esculhambando operários e camponeses (categorias de trabalhadores de origem pobre) e dizia que os generais estavam "construindo um reino de amor" para o futuro.
Aí vamos parar para pensar. O "homem mais puro do Brasil" pedindo para orarmos a generais e, por conseguinte, aos torturadores, que estavam promovendo a carnificina contra acusados de desobediência ao regime militar, num contexto de dedurismo que, se puder, pode jogar inocentes aos porões da morte (como aliás se fez muitas vezes) apenas por um capricho rancoroso de um desafeto?
E isso é tão grave se observarmos o que o moralismo "espírita" é capaz de fazer. Embora não tenha havido exemplos desse nível, o "espiritismo" poderia atribuir ao sofrimento da tortura e dos assassinatos a supostos "reajustes morais" ou "resgates espirituais", um juízo de valor severo muito comum entre os "espíritas".
Imagine atribuir às vítimas de torturas da ditadura militar a supostas encarnações passadas de senhores de engenho que maltratavam escravos, uma acusação feita sem provas mas com convicções - Deltan Dallagnol, o procurador dos gráficos de Power Point, é evangélico, mas até parece ser "espírita" - , que mais contribui para ofender as vítimas do que explicar certos sofrimentos extremos, prolongados ou fatais.
E chegamos a terceira fase das relações da Globo com Chico Xavier. Saindo de cena a TV Tupi, que antes fazia blindagem ao "bondoso médium", que foi "presenteada" com a falência ("boas energias" dos "mui amigos espíritas"), a FEB, também vendo morrer o "mentor" terreno e dublê de empresário de Chico Xavier, Antônio Wantuil de Freitas, ex-presidente da entidade, resolveu agir.
Tomando como referência o documentário de Malcolm Muggeridge sobre Madre Teresa de Calcutá, intitulado Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), de 1969, a FEB realizou parceria com a Rede Globo, emissora em ascensão na ditadura militar, para reinventar o mito de Chico Xavier entre os brasileiros. Foi na década de 1970.
Para a Globo, foi ótimo, porque ela precisava se manter no poder usando um ídolo religioso supostamente de aceitação "ecumênica" e até "laica" (sem vínculos religiosos), para neutralizar o crescimento dos pastores eletrônicos Edir Macedo e R. R. Soares. Sabe-se que, mais tarde, Edir Macedo adquiriu a Rede Record de Rádio e Televisão.
A ideia era promover um ídolo religioso de apelo acima de crenças e ideologias. A Rede Globo tem essa habilidade. Chegou a expandir a gíria "balada", criada pelo apresentador Luciano Huck no circuito da noite paulistana e difundida pelo lobby Rede Globo / Jovem Pan, para além do público de frequentadores de casas noturnas e fãs de pop dançante comercial.
A Globo manipula até uma parcela daqueles que dizem odiar a emissora. E sua habilidade na manipulação dessas mentes supostamente esclarecidas e invulneráveis permitiu para fazer popularizar uma imagem idealizada de Chico Xavier, como um pretenso colecionador de virtudes humanas e um suposto símbolo máximo de "amor e caridade".
Essa imagem foi construída usando o mesmo roteiro de Muggeridge para Madre Teresa (mais tarde desmascarada como uma megera que deixava os pobres alojados em condições sub-humanas), criando um paradigma de "bondade" que serve mais para promover o "benfeitor" e criar comoção no público, como se fosse um espetáculo.
Não por acaso, Chico Xavier e Madre Teresa são muito comparados. As imagens feitas deles seguem o mesmo roteiro de suposta filantropia, até as frases moralistas são muitíssimo parecidas. Uma "bondade" espetacularizada, cheia de palavras e estórias bonitas, supostos "causos" que alimentam seus mitos e transformam a "bondade" num entretenimento a ser gozado na acomodação dos sofás das casas dos abastados.
A partir dos anos 1970, a Rede Globo reinventou Chico Xavier com o roteiro de Muggeridge, e isso se consolidou com noticiários (Jornal Nacional e Fantástico) e documentários (Globo Repórter) que serviram para ensinar (mal) a Doutrina Espírita ao grande público.
A partir dessa visão "descompromissada", o mito de Chico Xavier se agigantou e o deturpador da Doutrina Espírita ganhou a complacência de todos, até daqueles que tentam recuperar as bases doutrinárias originais e sentem a tentação de manter Chico, Divaldo Franco, João de Deus e outros deturpadores apenas como enfeites.
Tudo isso foi feito para que os beneficiários maiores se revelassem: os irmãos João Roberto, José Roberto e Roberto Irineu, os irmãos Marinho, donos da Globo, que, diferente da Rede Tupi, se comprometeram direta e explícitamente com o apoio a projetos políticos dominantes.
A Globo que cresceu apoiando a ditadura militar e reinventando Chico Xavier prosseguiu investindo em filmes "espíritas" através da Globo Filmes e sustentando a fase dúbia do "movimento espírita", a tendência que finge respeitar o legado de Allan Kardec e praticar o igrejismo roustanguista na surdina.
Diante desse serviço, vemos os irmãos Marinho acumulando fortunas, num país de considerável pobreza e muitos retrocessos sociais trazidos por esse cenário político confuso que hoje temos. E tudo isso graças ao "Velho Chico".
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