Sabe-se que Francisco Cândido Xavier tem uma trajetória muito mais cheia de confusões e escândalos do que qualquer esboço de coerência e consistência. Só que ele é adorado, até de maneira ferrenha e fundamentalista, porque ele é "bonzinho".
As pessoas falam tanto na sua "bondade e humildade", elas que não conseguem ser boas e humildes por conta própria. Além do mais, que bondade Chico Xavier realmente fez? As "afirmações" são muito vagas, superficiais e subjetivas, não têm qualquer tipo de embasamento.
O que poucos se lembram é que a "bondade e humildade" de Chico Xavier não passa de um truque publicitário montado pela Rede Globo de Televisão, à semelhança do que o jornalista britânico Malcolm Muggeridge, da BBC, fez com Madre Teresa de Calcutá, no documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), de 1969.
MALCOLM MUGGERIDGE "INVENTOU" O MITO "FILANTRÓPICO" DE MADRE TERESA.
A Madre Teresa, na verdade a freira albanesa Anjezë (ou Agnes) Gonxhe Bojaxhiu, era apenas uma católica como outras que montaram instituições aparentemente filantrópicas, a partir dos anos 1950. Iniciativas sem muito caráter transformador, apenas um alojamento de pessoas infelizes, que não necessariamente são assistidas de forma brilhante, mas apenas paliativa.
De repente, o documentário de Muggeridge tocou nos sentimentos que misturam o apreço pelo sensacionalismo midiático e uma moral herdada do Catolicismo desde a Idade Média, e aí a Madre Teresa acabou sendo vista como "santa" e até canonizada pelo Vaticano.
No Brasil, Chico Xavier já havia sido mitificado como um paranormal católico que tentava se passar por "porta-voz dos mortos", primeiro usando nomes de poetas ilustres, através de Parnaso de Além-Túmulo, de 1932. A fraude não foi difícil de ser constatada, diante de dois aspectos:
1) O livro, que se pretendia "expressão acabada dos espíritos superiores", teve que sofrer bruscas revisões cinco vezes e no prazo de 23 anos. o que causa muita estranheza, afinal, um livro que se supõe contar com "mensagens mais elevadas da espiritualidade" nunca iria fazer revisões tão sucessivas e durante muito tempo, bastando sua primeira edição como definitiva. Em vez disso, poemas foram reescritos, outros foram incluídos, outros excluídos. Isso é elevado?
2) Os poemas apresentados não correspondem aos estilos dos autores originais. Há pastiches literários que apenas se assemelham na forma, à primeira vista, como um produto pirata, visto de longe, se parece muito com o original. Olavo Bilac "perdeu" a métrica poética. Castro Alves, o seu lirismo baiano. Auta de Souza, a sua doçura de menina. Antero de Quental, a sua dramaticidade lusitana.
MADRE TERESA DE CALCUTÁ, EM DOCUMENTÁRIO DA BBC, E CHICO XAVIER, EM REPORTAGEM DO JORNAL NACIONAL, DA REDE GLOBO.
Até o Brasil ter alguma noção da repercussão de Algo Bonito para Deus, que como de praxe ocorreu em meados dos anos 1970, Chico Xavier era trabalhado como um mito de maneira atrapalhada e sujeita a escândalos.
De incidentes como a usurpação do nome de Humberto de Campos - que teria sido uma revanche de Chico Xavier contra a resenha um tanto irônica que o autor maranhense fez a Parnaso de Além-Túmulo, já que Chico inventou um suposto Humberto que escrevia não como intelectual mas como um padre - ao caso da farsante Otília Diogo, o mito de Chico trilhava um caminho de pedras.
Ele só se tornou mais organizado tempos depois, por volta de 1977, 1978, quando as Organizações Globo fizeram as pazes com Chico Xavier. Sabe-se que a corporação da família Marinho, por influência de católicos ortodoxos como Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima e outros, era inicialmente hostil a Xavier e chegou a corroborar denúncias que o Diário de Minas divulgou em 1958, vindas do sobrinho Amauri Xavier Pena, que disse que a mediunidade do tio era uma farsa.
Duas décadas depois, a família Marinho fez as pazes e as relações da Globo com Chico Xavier são tão harmoniosas que os filmes relacionados à trajetória dele e suas obras são co-produção da Globo Filmes, e se encaixaram bem na linha noveleira de sua dramaturgia.
MADRE TERESA DE CALCUTÁ E CHICO XAVIER ACOLHENDO CRIANÇAS - SEMELHANTE APELO PUBLICITÁRIO.
A Rede Globo herdou da extinta TV Tupi a apreciação de Chico Xavier. Sabe-se que os Diários Associados viveram uma relação de amor e ódio contra o anti-médium mineiro. Geralmente a revista O Cruzeiro era contra e a TV Tupi (casa de amigos como Augusto César Vannucci, Nair Bello, Ivani Ribeiro e Ana Rosa), a favor.
O Cruzeiro tinha reportagens como as de David Nasser e Jean Manzon que desconfiaram das obras literárias que Chico Xavier atribuía a espíritos de grandes escritores, sem falar do caso da ilusionista Otília Diogo, desmascarada diante das fraudes de materialização que contaram com o apoio de Chico e Waldo Vieira (provavelmente o episódio foi pivô do rompimento entre os dois).
A TV Tupi foi a primeira a transmitir a novela A Viagem, de Ivani Ribeiro, inspirada em Nosso Lar. Tinha profissionais, como os acima citados, que eram amigos e seguidores de Chico Xavier. Além disso, o programa Pinga-Fogo também recebeu Chico Xavier para a famosa entrevista de 1971 (na qual ele se assumia católico e defendia a ditadura militar) porque o apresentador era amigo dele.
Se prestarmos atenção nas reportagens que passaram a ser feitas, no final dos anos 1970, sobre Chico Xavier, observa-se todo o roteiro do documentário de Muggeridge. Todo o discurso devocional, marcado por tomadas como o suposto filantropo acolhendo humildes e sendo recebido pela população, o cuidado com pessoas carentes e tudo o mais.
OUTRO APELO PUBLICITÁRIO: MADRE TERESA E CHICO XAVIER ACOLHENDO HUMILDES.
A única diferença é o contexto brasileiro, como foi o caso de Chico Xavier representar a visão de Jean-Baptiste Roustaing, o homem que primeiro deturpou a doutrina do pedagogo Allan Kardec. Associar Chico Xavier ao roustanguismo é muito doloroso para seus seguidores, mas é uma realidade da qual não cabem contestações diante de tantas e tantas evidências deixadas em livros.
No caso da Globo, há os aspectos brasileiros, há a atividade "mediúnica" no lugar dos "lares de moribundos", a roupagem "espírita" no caso de Chico Xavier etc. Mas a verdade é que, descontados esses aspectos particulares, tudo o que se fez a respeito de Chico Xavier é idêntico ao trabalho de Malcolm Muggeridge.
MADRE TERESA E CHICO XAVIER ERAM ADEPTOS DA TEOLOGIA DO SOFRIMENTO.
Com base no caso de Madre Teresa, a grande mídia brasileira, num contexto de crise causada pela ditadura militar, que não conseguiu realizar o prometido desenvolvimento do país, precisava também de um mito que se associasse aos estereótipos de amor e bondade usados para anestesiar as almas humanas.
Dessa forma, as reportagens que programas da Globo, como Jornal Nacional, Globo Repórter e Fantástico sobre Chico Xavier tinham o mesmo roteiro de Muggeridge devidamente adaptado. Os mitos de bondade, humildade e caridade eram trabalhados com todos os clichês conhecidos.
Além de aparecerem acolhendo pobres, abraçando crianças e sendo saudados pela população, eles ainda davam depoimentos com frases de efeito, ideias aparentemente elevadas mas que, em dado momento, sempre esbarravam na apologia ao sofrimento e em valores ultraconservadores do mais rígido moralismo, que pregavam a subserviência dos humildes e dos bons.
Tanto Chico Xavier quanto Madre Teresa eram adeptos da Teologia do Sofrimento, defendendo a frase de Santa Teresa de Lisieux, que disse que "o próprio sofrimento passa a ser a maior das alegrias, quando é buscado como o mais precioso dos tesouros", interpretando de forma deturpada e sado-masoquista a visão glamourizada do martírio de Jesus.
PONTOS SOMBRIOS: POBRES MAL-TRATADOS PELA MADRE TERESA E FALSA PSICOGRAFIA DE CHICO XAVIER.
Tanto Madre Teresa de Calcutá quanto Chico Xavier apresentaram pontos sombrios em suas trajetórias. A partir de pesquisas divulgadas pelo escritor inglês Christopher Hitchens e por acadêmicos canadenses, a caridade de Madre Teresa mostrou aspectos negativos, como o descaso aos abrigados em suas casas de caridade e o apoio dela aos poderosos.
Enquanto os pobres e miseráveis eram alojados uns aos outros sem qualquer proteção, facilitando o contágio de suas graves doenças, e eram remediados apenas com aspirina e parecetamol, enquanto tesouras e seringas eram reutilizadas sem higiene e lavadas apenas com água suja de torneira, Madre Teresa desfilava ao lado de ditadores, políticos tiranos e magnatas corruptos sob o pretexto de atrair dinheiro para si e "doá-lo" para os grandes sacerdotes do Vaticano.
Chico Xavier fazia pastiches literários, usava "leitura fria" através de seus colaboradores para colher o máximo de informações sobre pessoas falecidas e forjar cartas que tinham o mesmo estilo do "médium" e só apresentavam sua caligrafia, enquanto repassava os lucros de seus livros para os chefões que comandavam a Federação "Espírita" Brasileira, cuja sede (primeiro no Rio de Janeiro, na Av. Passos, depois em Brasília) é apelidada de "Vaticano" por causa de sua pompa.
É até lamentável que familiares, como a senhora que mostra uma "carta mediúnica" na foto acima, acreditem na "veracidade" dessas cartas, que só mostram a caligrafia de Chico Xavier até mesmo quando é no caso da suposta assinatura espiritual. Exibem tais cartas como se fossem um troféu, um atestado de suposto contato com os espíritos do além. Mas nada há que indicasse, de maneira segura e confiável, alguma caligrafia do espírito atribuído em cada mensagem.
Chico Xavier também cortejava os poderosos e não representou qualquer ameaça a eles. Pelo contrário, sua figura tranquilizava os conservadores e a ditadura militar nunca agiu contra ele. Até a frase "não censures" do "mentor" Emmanuel não tem a ver com o protesto contra o arbítrio militar - que Chico Xavier achava necessário para "reprimir ideologias desagregadoras" - e sim com o apelo para que ninguém questionasse coisa alguma na vida.
Entre os seguidores de Chico Xavier, a comparação com Madre Teresa de Calcutá é até estimulada e defendida. Chegam mesmo a ficar entusiasmados diante dessa postura. Mas, entre os questionadores de Chico Xavier, faltou um Christopher Hitchens que pudesse repercutir bem com as investigações sobre o lado sombrio de sua "filantropia" que nunca foi além de medidas paliativas e outras até traiçoeiras, como sua falsa psicografia.
Talvez nesse aspecto é que Chico Xavier, mesmo com um mito bastante confuso e cheio de irregularidades, torna-se um mito difícil de ser desmascarado. O de Madre Teresa o foi, mesmo quando houve o risco de Hitchens chamá-la de "anjo do inferno", em contraste com a imagem de "santa" que ela expressava ainda viva. Talvez pelo fato do Brasil ser, em si, um país confuso e irregular, que mal recomeça a se conhecer e se reencontrar.
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