
O manifesto Estamos Juntos, movimento supostamente em prol da redemocratização do Brasil, pode não expor essa realidade, a de que existem muitos direitistas ocultos nas esquerdas do nosso país. Mas mostra o quanto existem muitas "frentes amplas" que, de 1985 para cá, de forças progressistas compactuando com forças do atraso, mais para favorecê-las do que para possibilitar alguma mudança.
O sociólogo Jessé Souza fala de tendências novas que, quando surgem ou são introduzidas (no caso de serem fenômenos externos), precisam se adaptar a condições pré-modernas, moldando-se aos imperativos de valores retrógrados e até obsoletos que precisam ser "reciclados" pela aparente novidade.
É por isso que o Espiritismo, quando chegou ao Brasil, teve que, inicialmente conduzido pelo respaldo explícito a Jean-Baptiste Roustaing, se moldar aos padrões do velho Catolicismo jesuíta português e medieval, o que fez com que a doutrina originalmente fundada por Allan Kardec seja rebaixada a um mero "guarda-chuva" de católicos medievais que se tornaram dissidentes da Igreja Católica, cujas mudanças desagradaram seus ex-adeptos.
Como o Brasil conta com inúmeras doenças sociais, que envolvem do "jeitinho brasileiro" à "memória curta", passando por mil dissimulações e pretensiosismos, a falsidade humana se manifesta não em condutas zangadas nem rabugentas, antes em atitudes aparentemente simpáticas, gentis e cordiais.
Daí que eventualmente surgem casos como o Manifesto Estamos Juntos, comandado por setores neoliberais da política brasileira, como Fernando Henrique Cardoso e Luciano Huck, e que atraíram para si o apoio das esquerdas, em si autênticas - como da parte de Fernando Haddad, Flávio Dino e Guilherme Boulos - , mas que aqui elas tiveram que abrir mão de suas próprias causas.
O manifesto apenas pede que o presidente Jair Bolsonaro "respeite a legalidade institucional e as normas democráticas", sem desejar a ruptura com esse projeto reacionário. Bandeiras conservadoras como "manter a lei e a ordem" e "respeito aos valores da família" eram evocados, enquanto se ignorava necessidades como recuperação de direitos trabalhistas, que os próprios derrotados de 2014 (o mesmo PSDB de FHC) destruíram ao se juntarem a Michel Temer, então vice de Dilma Rousseff, em 2016.
O movimento é questionado por uma considerável parcela de esquerdistas, que viam no Estamos Juntos um projeto para defender um "bolsonarismo sem Bolsonaro" ou, quando muito, uma "democracia com Paulo Guedes", ou seja, com o mesmo projeto de desmonte dos direitos trabalhistas e venda das riquezas brasileiras ao exterior, além do fortalecimento financeiro dos grandes banqueiros, só que sob um aparato de "democracia e respeito institucional".
O ex-presidente Lula, que antes errou ao fazer negociações políticas com a direita não-tucana, como Fernando Collor, Paulo Maluf e José Sarney, decidiu não entrar no movimento, embora seu pupilo Fernando Haddad tenha aderido pessoalmente. Lula afirmou que não tem idade para ser "maria-vai-com-as-outras" e afirmou que FHC e Huck não representam a democracia.
DIREITISTAS INTERNOS
O que em breve se entenderá melhor, quando se efetuarem as auto-críticas das esquerdas hoje alvos de críticas duras até dentro do esquerdismo, é que há muita gente de direita fantasiada de esquerdista, caprichando o máximo no teatro esquerdista, sem a menor pressa de "desembarcar" (termo que significa abandonar a causa aparentemente apoiada).
O contexto atual é muito complicado para que novos Cabos Anselmos - alusão ao sargento que tornou-se um símbolo da traição ao esquerdismo, revelando um direitista enrustido nas forças progressistas - , porque muitos de seus similares precisam, até para obter vantagens pessoais a longo prazo.
Além disso, quando se revela um direitista após o "desembarque", ele repercute de maneira gigantesca na grande mídia, diferente do Cabo Anselmo de 50 anos atrás. Também é um contexto diferente do de 2010 a 2016, quando paulatinamente personagens da base de apoio de Lula e Dilma Rousseff passaram a conspirar contra ambos, o que revelou um desgaste de reputação com a má reputação, algo que os novos Cabos Anselmos querem a todo custo evitar.
Não é preciso esforço para identificar um pseudo-esquerdista, um direitista interno nas fileiras esquerdistas. Seu discurso é exageradamente apaixonado, os textos, panfletários, as ideias produzidas sem um conteúdo relevante, sendo mais uma reprodução morna de clichês do pensamento esquerdista, sem acrescentar coisa alguma de mais relevante.
Há bajulações a símbolos esquerdistas, de Ernesto Che Guevara a Lula. Há exaltações demasiado emotivas às classes populares, uma falta de criatividade e argumentação lógica nos textos, e um pretensiosismo esquerdista forçado, como se quisesse buscar protagonismo e não lutar por causas progressistas. Não há um conhecimento de causa e o esquerdismo mais parece um teatro muito bem encenado, enquanto preconceitos ocultos são guardados no armário.
A Carta Capital é, hoje, a trincheira desses direitistas ocultos e sua retórica por demais emotiva. Houve outros veículos, como Fórum, Brasil de Fato e Caros Amigos, fora os espaços na Internet, que também serviam de espaço para essa agenda de direita inserida nas esquerdas.
Já houve o caso de jornalistas culturais que passavam pano na decadência da cultura popular, entregue a formas popularescas e bregalizantes, voltadas à glamourização da pobreza, da ignorância e até mesmo do caráter patético de alguns pobres que sofrem distúrbios mentais ou vivem situações sócio-profissionais lamentáveis, como a prostituição e o comércio clandestino.
Recentemente, temos o caso dos autoproclamados "espíritas de esquerda", como Franklin Félix e Ana Cláudia Laurindo, que não produzem conteúdo relevante a níveis de esquerdismo, se limitando apenas a uma papagaiada textual e por demais panfletária, com fortes apelos emocionais que chegam ao nível da mais enjoativa pieguice. Eles não podem ser confundidos com Sérgio Aleixo e Dora Incontri, esquerdistas autênticos e inspirados no Espiritismo original francês.
Um direitista infiltrado nas esquerdas é aquele que precisa disfarçar essa posição oculta caprichando nos apelos emotivos fortes. Seu discurso é ufanista, exaltado, enquanto sua capacidade de argumentar e produzir conteúdo de ideias é nula, limitada apenas a uma mera imitação do que já é manjado. É um sujeito muito efusivo, afeito a fazer discursos "apaixonados", pondo a Emoção no lugar da Razão.
Isso não é só nos "espíritas", mas também em jornalistas culturais e no conjunto dos "ativistas" de "funk", o mais pretensioso ritmo da chamada música popularesca. Em todo caso, aspectos estranhos como uma sutil defesa da domesticação das classes populares, simbolizada seja por Chico Xavier, seja pelo "funk", são defendidos ocultamente, sem assumir a domesticação e alegando um suposto desejo de ver as populações pobres "mais prósperas e felizes".
O problema é que tal abordagem, tida como "sem preconceitos", é preocupantemente preconceituosa. É uma visão paternalista, disfarçada de "libertária", mas que nunca contribui para a emancipação real do povo pobre, antes entregue a fórmulas paliativas de redução parcial dos efeitos da pobreza humana.
Há até mesmo o discurso "substitutivo", uma bomba semiótica que toma como "ativismo" fenômenos que mais desmobilizam do que causam despertar nas classes populares. O Assistencialismo de Chico Xavier e o consumismo lúdico do "funk" são exemplos, formas de "ativismo" que servem para evitar o verdadeiro ativismo, que são as rebeliões populares, incômodas para as elites do privilégio.
O discurso é bem sutil, montado como se fosse "generoso", e isso dá a falsa impressão de que esses "generosos esquerdistas" são muito altruístas. Mas suas visões, analisadas com profundidade, mostram o contrário, se manifestando um elitismo oculto e cruel, de gente que prefere ver pobres tomando sopinha, obedientes, num "centro espírita", ou rebolando o "funk" numa casa noturna, em vez de "perder tempo" fazendo passeatas por reforma agrária e volta dos direitos trabalhistas.
Há esquerdas que agem assim e que, com toda a bajulação que fazem a Lula e outros símbolos do esquerdismo mais conhecido, se aproximam mais do oportunismo "progressista", mas assumidamente neoliberal, de Luciano Huck.
Por isso, é preciso tomar cuidado, porque hoje os traidores das esquerdas levam mais tempo para se desembarcarem, porque podem até mesmo apelar para o vitimismo para continuarem fingindo serem progressistas, enquanto seu direitismo enrustido repousa como o magma de um vulcão ativo que, todavia, não irá explodir tão cedo. Cuidado com esses "esquerdistas".
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