
De volta ao dial do Rio de Janeiro há dois meses, a Rádio Cidade mais uma vez tenta se arriscar como "radio de rock", sempre dentro daquela linha conservadora e aquela mentalidade de rádio só de hits. A única mudança que se deu, em relação a experiências anteriores (1995-2006 e 2014-2016), é que o repertório será concentrado no perfil flash rock e voltado ao público mais adulto.
Apesar da volta ocorrida em fevereiro, seu marketing começou a pegar mesmo nas últimas semanas, com o reflexo dos festivais Lollapalooza Brasil, que já ocorreu, e o Rock In Rio, prestes a ocorrer daqui a cinco meses.
O que chama a atenção é que a Rádio Cidade não teve trajetória original como rádio de rock e é irônico que seu perfil "rock clássico" venha com mais de quatro décadas de atraso, porque perdeu a oportunidade de competir com a Eldo Pop, especialista no ramo. A rádio surgiu e passou muito tempo ancorando o pop convencional, e, dizem, só passou a explorar o rock por causa da inveja que seus donos tiveram com a Fluminense FM.
É mais ou menos como Arianny Celeste, incapaz de ser uma musa de nerds e losers, ter inveja da Maisie Williams por causa disso. Ou Valesca Popozuda mordendo os beiços porque não pode ser uma feminista nos moldes de Emma Watson. Ou, como vimos na política, um Aécio Neves não ter o carisma e a popularidade do ex-sindicalista e ex-presidente Lula.
A Rádio Cidade até não teria problemas de abordar o rock se não fosse por dois aspectos: deveria ter feito o que fez agora em 1977 ou fazer um acerto de contas dizendo que se arrependeu de sua orientação original. A Rádio Cidade dos últimos 24 anos preferiu se comportar como o personagem Haroldo, de Chico Anysio, que apenas desconversa sobre seu passado de Luana.
Por ironia, nesse quadro, o saudoso humorista interagia com o também falecido Paulette, que havia atuado na novela Dancing Days, cuja temática era a disco music. Na época da novela, 1978, quando o punk rock, depois do auge, traçava novos caminhos, o rock progressivo tentava se reinventar, quase sempre em vão, e o heavy metal começava a crescer em popularidade, a Rádio Cidade não estava aí para o rock. Tocava disco e pop eclético. E não é por causa da censura ditatorial: o rock comia solto na Eldo Pop, que chegou a ser uma das mais ouvidas do rádio FM carioca.
De 1995 para cá, a Rádio Cidade cismou que queria ser roqueira, com uma obsessão que ajudou a tirar a vida de Michael Jackson - ele mesmo um soulman negro que queria ser branco e roqueiro e recorreu a muitos medicamentos para isso - , e o público acabou mal acostumando, o que transformou o "rock da Rádio Cidade" numa espécie de "seita religiosa" na qual vamos falar ainda nesse texto.
"PROFISSIONAIS DE ROCK"
Do contrário que muitos ingênuos pensam, e opostamente o que as tradicionais rádios de rock fizeram, nas FMs dos anos 1980 e em horários parciais de rock nos anos 1990 e 2000 e em várias rádios digitais, a Rádio Cidade não é uma rádio feita por pessoas ligadas ao rock.
Seus locutores, que adotam um estilo pop que não difere, por exemplo, de uma Mix FM ou Jovem Pan - alguns, mas não todos, agora têm que mudar a dicção, mudando o timbre e falando mais devagar - , são os que os especialistas em cultura rock definem como "profissionais de rock".
São radialistas que tentam dar a falsa impressão de que possuem um vínculo intenso e orgânico com a cultura rock. Na verdade, isso é um truque de marketing, porque eles estão associados a anunciantes de produtos e serviços consumidos pelo público de rock. Possuem um contrato no qual precisam vincular suas imagens ao rock, pois são "representantes" oficiais do gênero.
Daí o termo "profissionais de rock", que infelizmente botou muito garotão sarado para falar bobagem em "rádio de rock" enquanto os verdadeiros conhecedores de rock, desempregados, arrumam bico em oficinas que consertam aparelhos de som e que, na solidão dos trabalhos, tocam em suas velhas vitrolas ou toca-CDs os discos de rock mais obscuros, que as "rádios rock" de hoje só vão tocar quando precisam subir pontos no Ibope com algo mais "inusitado". Atualmente, aliás, a Rádio Cidade está tocando canções "mais difíceis" para evitar levar surra das rock webradios do exterior.
Os locutores da Cidade não são especialistas em rock e não veem diferença entre um Deep Purple e um Black Sabbath. Leem corretamente os textos com informações sobre rock, pronunciando bem as palavras, sobretudo em inglês, mas não têm ideia do que estão lendo, lembrando os antigos locutores leitores de teleprompter dos telejornais antes da popularização dos chamados "âncoras" (jornalistas que em parte elaboraram os textos jornalísticos que leem e depois comentam em cima).
Apesar da conduta deixar a desejar, pois a mentalidade é pop e esses radialistas demonstram terrível desconhecimento de rock, eles querem o vínculo ao rock de qualquer maneira. Mas, quando acaba o expediente de trabalho, eles fogem do rock como o diabo foge da cruz e ouvem outras coisas. Nada do ouvinte deslumbrado convidar um locutor desses para ouvir um disco de rock lá em casa. O locutor entra em pânico (não falamos no programa da Jovem Pan).
OUVINTES CONSERVADORES
Outro detalhe que se vê no "fenômeno" Rádio Cidade é que seus ouvintes "roqueiros" são ultraconservadores e temperamentais. Não são "conservadores" à maneira dos roqueirões de jaqueta que percorrem rodovias montados em motocicletas barulhentas da marca Harley-Davidson. Os "roqueiros da Rádio Cidade" são conservadores no sentido de serem "caretas", mesmo, embora num contexto reacionário dos "coxinhas" e "bolsomínions" dos últimos tempos.
Eles aceitam tudo que a Rádio Cidade determinar. Se, por exemplo, Gugu Liberato for chamado para apresentar um programa de heavy metal na Rádio Cidade, os ouvintes aceitam isso numa boa. Os ouvintes apenas só criticariam se um locutor tocar "Smoke On The Water" do Deep Purple e "War Pigs" do Black Sabbath. Afinal, tem que manter as aparências, não se admite quebrar certos protocolos.
Os ouvintes "roqueiros" da Rádio Cidade, além de conservadores e temperamentais (é famosa a sua irritabilidade fácil), são muito arrogantes. Acham que "só o rock presta e o resto é café pequeno". Detestam serem contrariados e a menor crítica eles reagem com nervosismo, ainda que, dentro da "síndrome da projeção" (instinto psicológico que faz as pessoas atribuírem seus defeitos aos outros), digam sobre seus críticos: "Ih, esse cara merece um Rivotril", "lá vem aquele chato de novo".
O conservadorismo permite que a Rádio Cidade não tenha programação que enfatizasse rock alternativo - apesar do arrendamento dos programas do DJ José Roberto Mahr, durante alguns períodos - , mas colocasse programas que misturam besteirol e futebol, como o "Rock Bola", num país em que a quase totalidade dos jogadores de futebol abomina rock.
Dizem que a Rádio Cidade e, por associação, a 89 FM em São Paulo, foram pioneiras em bolsomínions, que são aqueles reacionários temperamentais que se enfurecem até quando as mães lhes dizem que eles precisam vestir casacos para não pegar frio na rua. Sua "pedagogia" permitiu que surgissem roqueiros fascistas como o problemático youtuber Nando Moura.
Os "roqueiros da Rádio Cidade" já defenderam o fim do Poder Legislativo, adotavam um discurso "anti-corrupção", e nas redes sociais foram os primeiros a disparar contra políticas de inclusão social dos governos do Partido dos Trabalhadores. E chegam mesmo a falar mal da rebeldia roqueira, porque os "roqueiros da Rádio Cidade" parecem quase evangélicos com sua conduta carola que os faz se sentirem os "donos da verdade", como se eles fossem o centro do universo rock geral.
"SEITA RELIGIOSA"
Num Rio de Janeiro marcado por religiões conservadoras - os evangélicos neo-pentecostais, setores conservadores do Catolicismo e o "movimento espírita" - , isso reflete no chamado "religiosismo" das coisas cotidianas. Quando veio a pintura padronizada nos ônibus do RJ, busólogos pareciam estar anunciando um "milagre" da "religião da mobilidade urbana".
Muitos desses busólogos são evangélicos, mas, independente disso, nada impede que os busólogos do Rio de Janeiro agridam quem discorda até de um botão de camisa que usam. A fama dos busólogos do Grande Rio é das piores em todo o Brasil, a ponto deles serem chamados de "brutólogos" ou "pit-bullzólogos". Eles também foram pioneiros no bolsonarismo.
O "religiosismo" ocorre quando medidas que não são lá grande coisa são exaltadas por um grupo de pessoas como se fosse a "oitava maravilha do mundo". Uma vez anunciada nas redes sociais, uma medida dessas, mais prejudicial do que benéfica, é exaltada por internautas deslumbrados que, em "efeito manada" (quando a adesão é "no automático"), recebe apoio de um grande número de membros falando as mesmas bobagens, geralmente com mensagens lacônicas.
A Rádio Cidade trata o rock não como uma cultura musical, como, em outros tempos, trataram a Eldo Pop e a Fluminense. Trata como se fosse uma "religião". E, como em toda religião - o "espiritismo" brasileiro não é exceção à regra - , a carga emotiva leva à cegueira que faz esses "roqueiros" serem as últimas pessoas a quem devamos recorrer para conversar sobre rock (creio que nem sequer as últimas, para dizer a verdade). Melhor falar de rock com um repentista nordestino, que talvez tenha melhores condições para entender o assunto.
As pessoas nem sabem qual o rock estão ouvindo, se "American Woman" do Lenny Kravitz e "Behind Blue Eyes" do Limp Biskit não são covers ou qual o novo guitarrista do Ozzy Osbourne, mas precisam sempre ouvir uma sequência cujos sons sejam identificáveis como "rock", nos 102,9 mhz. Enquanto houver um som aparentemente cru com guitarra, baixo e bateria e, às vezes, algum órgão mais arrepiante, eles vão dormir tranquilos.
Mas eles comparam o rock como uma "seita religiosa". Falam de rock como se fossem fanáticos religiosos, como se a sintonia da Rádio Cidade fosse um culto evangélico. Muitos desses "roqueiros" nem ouvem rock na vida cotidiana, curtindo também "funk", "sertanejo" e até breguices do túnel do tempo como Ray Conniff. Mas, quando sintonizam os 102,9 mhz, só querem ouvir vitrolão roqueiro, ainda que os microfones sejam ocupados por locutores festivos do estilo FM O Dia.
Não dá para conversar sobre rock com eles porque eles tratam o rock como se fosse um altar e os roqueiros, estátuas de santos. Falar sobre marca de guitarra, sobre estilo de guitarrista? Esqueça. Falar da polêmica de que o rock progressivo é melhor ou não que o punk, também não dá. Tudo o que os "roqueiros da Rádio Cidade" fazem é só bajular o rock, dizendo coisas como "sonzeira", "legal pacas", "show de bola", "melhor coisa do mundo".
É mais ou menos como falar de Jesus Cristo para um beato religioso (inclusive um "espírita"). Não dá certo. Quem quer falar mesmo sobre Jesus é melhor conversar com um historiador especializado em Império Romano, período em que viveu o famoso mensageiro, ou um arqueólogo especializado em Oriente Médio. As conversas seriam mais produtivas.
Os "roqueiros da Rádio Cidade" vivem num transe. É como Edir Macedo fazendo uma oração e os fiéis fecharem os olhos, num profundo transe. Ou, no passado, o reacionário "médium" Francisco Cândido Xavier, conhecido popularmente como Chico Xavier, orando ou dando depoimentos. É um transe coletivo, muito diferente daquela audição dos verdadeiros fãs do gênero.
E isso não pode ser confundido com a audição concentrada ou outro tipo de "transe" que é o de pensar nas coisas da vida. O verdadeiro ouvinte de rock, que preferiria uma Fluminense FM que uma Rádio Cidade, ouve as canções pensando em coisas diversas da vida.
Já o ouvinte da Rádio Cidade, não. O "transe" é pela "mística do rock", a música não é ouvida por ser um rock no sentido musical do termo, mas por causa do "prestígio" e da "simbologia" que isso carrega. É mais um ritual do que uma apreciação de verdade. Não é questão de gostar dessa ou daquela música ou artista em si, mas porque "tudo é rock". Ou seja, o cara não ouve uma canção de rock porque "o rock é legal", mas pelo status que acha que vai ter "ouvindo só rock".
É difícil explicar isso num contexto de burrice na Internet e compreensão binária do mundo. Ainda mais para "roqueiros" que, noutras vezes, chamaram África de "país" e traduziram "esportes radicais" como "radical sports" (o certo é "action sports"). E, além disso, para pessoas que vivem esse "complexo de superioridade roqueiro" que inexiste até em músicos do gênero, a Rádio Cidade virou a "vaca sagrada" da qual nem uma tosse deve ser contestada.
Na verdade, a cultura rock anda muito fraca ultimamente, e os jovens em geral estão gostando mais de "funk", "sertanejo" e o pop qualquer nota dos EUA, com muita coreografia e sintetizadores. A partir dessa situação, a Rádio Cidade tenta voltar sua programação "roqueira" ao adulto médio (25 a 49 anos), tentando tocar "não-sucessos" só para ficar bem na fita diante das rádios roqueiras internacionais.
Mesmo assim, a Rádio Cidade mantém este nome, de uma rádio que não nasceu roqueira e só correu atrás porque viu vantagem nisso, e mantém de certa forma uma mentalidade pop que ainda traz dificuldades para variar o playlist (esforçado mas não abrangente). E ainda mais com radialistas que são apenas "profissionais do rock" e, em parte, parece que continuam falando como se fossem locutores da Mix FM. Com toda a "atitude rock" da Cidade, sempre falta o estado de espírito necessário do gênero. Este continua fora do ar no dial do Grande Rio.
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