
Você não apoia Jair Bolsonaro, mas adora Francisco Cândido Xavier. Você odeia falar em J. B. Roustaing, mas adora Chico Xavier. Sem saber, você pode ser bolsonarista ou roustanguista sem saber que há uma analogia de ideias, uma afinidade de princípios, que sua cegueira religiosa se recusa a perceber.
Já alertamos sobre a reação, com uma histeria tipicamente bolsonarista, de não-bolsonaristas diante da associação de Bolsonaro com Chico Xavier, mesmo com a evidente similaridade dos lemas "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" com "Brasil, Acima de Tudo, Deus Acima de Todos".
Da mesma forma, é conhecido o fato de que pessoas que se dizem "espíritas" rejeitarem o "exemplo lamentável" de Jean-Baptiste Roustaing e, no entanto, abraça muitas de suas ideias aproveitadas por Chico Xavier, relacionadas sobretudo à maneira como a reencarnação é vista, como um processo de cumprimento de sentenças criminais, como um "pagamento de dívidas passadas (e de vidas passadas)".
Muita gente precisa prestar atenção no que realmente é, no que pensa e nas ideias de que defende. O pessoal é realmente de esquerda, se acha "alternativo" ou "descolado"? A mulher é realmente uma feminista ou prefere se afirmar com um sensualismo machista? O machista realmente gosta da mulher com a qual quer casar? E o empresário, ele necessita mesmo ter uma esposa se ele fica o tempo todo viajando para negócios?
O bolsonarismo, pelo menos, representou uma grande lição para o país. É ver o lado oculto de pessoas que parecem avançadas e modernas, mas que escondem aspectos retrógrados e profundamente conservadores, que, uma vez manifestos, causaram um profundo choque na sociedade.
Quem é que imaginaria que o rock praiano e bem humorado do Ultraje a Rigor revelaria um pregador de extrema-direita, seu vocalista e guitarrista Roger Moreira? Quem é que veria reacionarismo em alegres atletas olímpicos, símbolos de um suposto humanismo esportivo, associados à uma ideia de aparente superação? E quantos surfistas, rappers, youtubers, gente com cabelo pintado de azul, pessoas de humor corrosivo, também não expressaram um reacionarismo antes impensável?
E os roqueiros de extrema-direita, que destoam da natural rebeldia que, nos anos 1960, usou o rock como trilha-sonora de movimentos libertários? E os pobres de direita, que pedem restrições às reivindicações trabalhistas, por acreditarem que suas limitações serão abonadas pela "vontade de Deus"?
Tantas pessoas, pelo menos, saíram do armário, e falta muito disso no Brasil, onde pessoas conservadoras caem de pára-quedas nas causas progressistas de esquerda e, muitas vezes inimigos internos nesses meios, atuam fingidamente como "amigos sinceros", chegando mesmo a caprichar no seu faz-de-conta, trabalhando um "esquerdismo" que se supõe "exemplar e autêntico".
Sinceridade evidentemente não é uma virtude de muitos brasileiros. Há medo de todo tipo: de autocrítica, de ficar fora de moda, de parecer decadente, de ser expulso de uma festa, de ser abandonado pelos amigos, de perder as vantagens desejadas na vida. No alpinismo social, somos atletas que permanentemente trapaceamos para alcançarmos pontos altos de uma montanha.
E isso pega de surpresa muita gente "de bem", muito indivíduo "progressista", muito suposto esquerdista que grita "Lula Livre" enquanto repousa, no seu inconsciente, o grito sufocado do "Bolsonaro 2022".
É isso que nos faz impotentes para derrubar o legado do golpe político de 2016. Gritamos "Fora Temer" sem uma grande convicção, tanto que o presidente Michel Temer encerrou o mandato rindo de todo mundo, criando um memorial para si mesmo e gozando daqueles que, no fundo, aceitaram seus abusos, sob a desculpa da tolerância e do pacifismo. E isso ameaça se repetir com o governo Jair Bolsonaro.
As pessoas precisam se resolver na vida. Até mesmo pais de família e idosos de 70, 80 e tantos anos, precisam verificar que eles não são os sábios que concluíram sua formação ideológica e sua visão de mundo, e que eles não se tornaram mais modernos nem progressistas como pensam de si mesmos. Ver que eles são os que mais necessitam rever seus valores é chocante, no ocaso de suas vidas.
Vemos não-bolsonaristas e não-roustanguistas caindo no ridículo. Gente que jura "fidelidade absoluta" e "respeito rigoroso" a Allan Kardec, mas, depois, vem logo adorando Chico Xavier e suas ideias. E o pessoal que pensa assim não consegue se livrar de suas próprias gafes.
Vejamos. Um sujeito lê a obra kardeciana e depara com a ideia de que "é preciso que tudo seja verificado pelo rigor da Razão e da Lógica". O sujeito concorda. Mas depois ele lê um livro de Chico Xavier, que diz "é preciso tomarmos cuidado, porque a Razão não traz todas as respostas da vida e o rigor da Lógica pode representar a sujeição às paixões humanas", uma clara restrição ao exame rigoroso da Razão, que Xavier considera "amaldiçoado pela cupidez dos homens na Terra".
Em outras palavras, devemos lembrar: Allan Kardec recomendava que a Fé deve ser examinada pelo rigor da Razão, e o que escapar da Lógica não tem validade. Chico Xavier discorda, dizendo que a Razão é que precisa ser limitada e não invadir os terrenos da Fé, pois, no caso contrário, ele é fruto de "maliciosas e maledicentes paixões terrenas".
As pessoas não percebem isso. Elas estão presas em simbologias e paradigmas confusos e contraditórios, mas que são aceitos e permanecem em sua zona de conforto porque, aparentemente, elas não afetam de imediato o cotidiano das pessoas. Temos um pragmatismo viciado, que já aceita retrocessos, e, em tempos de pós-verdade, em função desta somos levados a aceitar, como "verdades indiscutíveis", mentiras descaradas mas que nos soam agradáveis e positivas.
Devemos nos reeducar. De repente, queremos tudo e achamos que a vida é um restaurante a quilo e que, pelo nosso direito de escolha, combinado com a compreensão binárias das coisas, somos levados a jogar doce de leite na feijoada, sob a tese de que, se um é uma delícia e o outro também é, os dois juntos devem ser mais deliciosos ainda. E sabemos que isso não é verdade, o resultado fica enjoado de tão ruim.
Num contexto de compreensão binária das coisas, vemos, por exemplo, muitas mulheres-objetos, que só falam de sexo e só mostram o corpo, falando em "liberdade corporal" sem saber que estão se expondo para um público de machistas afoitos. E essas mulheres-objetos, mesmo representando padrões machistas de sensualidade feminina, ainda se dizem "feministas" e se irritam quando são questionadas sobre essa declaração.
Mas o pior é quando feministas mesmo, intelectuais não necessariamente associadas à sensualidade, também demonstram complacência com a erotização das mulheres "populares até demais". Chegam mesmo a dizer que as "mulheres da periferia" (supostamente fãs e representadas pelas mulheres-objetos) "não têm capacidade" de expressar o feminismo sem a exposição do corpo, e atribuem a objetificação da mulher como uma "brincadeira de cão e gato" para "enganar machistas". Essa ideia parece pertinente, mas não é, pois na prática se confirma como uma mentira deslavada.
As pessoas precisam parar para pensar. Todo mundo quer ser legal na marra. Temos até mesmo uma Rádio Cidade, que poderia tocar só pop, tocar pop dançante sem medo, ir de Rihanna e Justin Timberlake adoidado, mas ela insiste em ser "roqueira" porque seu dono e sua "panela" de produtores e ouvintes acha cool, e paga-se muito caro pelo pretensiosismo que mostra deslizes muito sérios em empreitadas como esta e tantas outras, em outros setores da sociedade.
No "espiritismo" brasileiro, a própria trajetória de uma figura retrógrada como Chico Xavier, que lembra mais um sujeito errante do século XIX, é uma coleção de pretensiosismos mil, que o fizeram ser um falso intelectual, um falso médium, um falso profeta, um falso cristo, um falso filantropo, um falso ativista, um falso progressista, um falso filósofo. Enfim, um farsante completo, na sua obsessão em parecer cool em todos os sentidos.
É tanta pretensão no nosso país que isso faz com que surjam conflitos extremos e até mesmo trágicos, como feminicidas matando as mulheres que eles não querem mais namorar, impedindo outros homens de tê-las. Temos desejos desmedidos, uma desigualdade extrema entre o que queremos e o que necessitamos, que faz com que muitos tenham demais o supérfluo e outros não tenham sequer o mínimo necessário. E é isso que faz o Brasil das desigualdades, um país dos que querem demais o que não precisam, prejudicando aqueles que nem querem muito, mas dificilmente têm o necessário.
Não é à toa que a pronúncia de cool, uma conhecida palavra do idioma inglês, é a mesma de um palavrão que é sinônimo de ânus e está associado a tudo que é asqueroso e repugnante. E isso se interrrelaciona com a falta de humildade, de despretensão e autocrítica de pessoas que querem demais na vida, e ficam quebrando a cara diante da falta de medida entre os desejos humanos obsessivos e a incompetência diante das causas desejadas.
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