Estranha moral em que vivemos, nesses tempos de retomada ultraconservadora, quando uma parcela da sociedade despreza as mudanças do tempo e força o Brasil a andar para trás e para baixo, dando nesse desastrado governo republicano que agora temos.
Numa sociedade machista, as pessoas têm medo só de imaginar que feminicidas também podem morrer um dia. De repente, homens que tiraram a vida de suas próprias mulheres viraram "entes queridos", machistas que sofrem pressões emocionais, descuidam da saúde etc e ainda cometem crimes e as pessoas se arrepiam só de ver que eles podem adoecer e falecer um dia. E nisso num país em que pessoas bem mais importantes e valiosas morrem mais cedo!
Num país marcado pela pós-verdade, se dois homens fumam demais, maltratam o coração com algum dano à saúde etc, com o mesmo organismo vulnerável e frágil, se um deles é ator de teatro e outro um rico e poderoso qualquer que assassinou a ex-mulher e se livrou da cadeia, muitos ignoram as lógicas da Biologia e acreditam que o segundo chegará inteiro e sereno aos 90 anos, enquanto se conformam em ver o primeiro morrer cedo de repente. Dois pesos, duas medidas.
Sem falar que as vítimas desses machistas morrem com 20, 30 anos. Seus assassinos não podem morrer sequer com 50, mesmo entupindo o organismo com cigarro, drogas, álcool e levando uma vida estressante. Um famoso feminicida atingiu a idade de Leonard Cohen, que se preparou para morrer e morreu, e os machistas não se prepararam sequer para dar adeus a ele, que com um passado tabagista que arrepiou os próprios amigos, poderia ter morrido há mais de 25 anos.
Isso é um moralismo que parece sair de um livro de Franz Kafka, mas é a realidade do Brasil. Daí o "espiritismo" brasileiro que temos, que, pelo jeito, tem um aspecto muito comum com a dos machistas da tal "defesa da honra": considerar a vítima "culpada" se ela sofre algum infortúnio ou tragédia. "A vítima é a culpada", reza esse moralismo que insiste em resistir no século XXI.
MÉDICA ACUSA MENINA DE SETE ANOS DE SER "CULPADA" PELO ESTUPRO
Em Rondonópolis, Mato Grosso, uma pediatra se recusou a atender uma menina de sete anos cuja mãe afirmou ter sido vítima de um estupro. A criança estava abalada e assustada, porque havia sido assediada sexualmente pelo tio. A pediatra então fez seu juízo de valor para explicar por que não pode atender a menina.
A médica alegou que "vítimas não existem" e que a menina era a culpada pelo estupro. Disse que a criança exibia "uma energia sexual" que puxou o tio para ter sexo com ela e alegou que a menina tinha esse problema contraído de "vidas passadas".
Afirmando-se "espírita", a médica, depois que foi processada pela mãe da menina, alegou, em sua tese de defesa, que expressava sua "liberdade de crença, consciência e religião" para se recusar a dar atendimento à menina.
Mas a médica foi condenada a indenizar a mãe da menina por danos morais, no valor de R$ 10 mil, e uma sindicância foi aberta, havendo possibilidade da pediatra perder o registro profissional do Conselho Regional de Medicina. A sentença ainda permite recurso.
É um caso gravíssimo e que, aparentemente, foi apenas um deslize pessoal de um julgamento de valor exagerado. Mas, embora a pediatra tenha, acima de tudo, que se responsabilizar individualmente pelo que fez, o "movimento espírita", pelo seu caráter deturpador e pelo seu moralismo severo, também deve ser responsabilizado.
MORALISMO "ESPÍRITA" É ASSIM MESMO: SEVERO
A pediatra não tirou do nada seu julgamento de valor. Também não partiu apenas de "certos centros espíritas" que "falharam" na compreensão doutrinária. Ela se deve à doutrina do "espiritismo" brasileiro como um todo. Seu moralismo severo está no conjunto da obra e mostra o lado sombrio de sua própria ideologia, associada aparentemente a uma combinação de religiosidade, filantropia e consciência da vida espiritual.
A título de comparação, é bom deixar claro que esses juízos de valor partem do "mais gabaritado médium" da doutrina, Francisco Cândido Xavier. Beato católico e moralista ultraconservador, ele se "fez espírita" apenas porque foi excomungado pela Igreja Católica por ser paranormal - embora os valores católicos que Chico Xavier defendia sejam bem ortodoxos e medievais - e, por isso, muitos não acreditam que ele fosse capaz de fazer também juízos de valor cruéis.
O processo contra a pediatra, que os fanáticos "espíritas" definem como "perseguição da Justiça terrena aos propagadores da fraternidade e da consciência da vida eterna", não é o primeiro por danos morais que ocorre em relação ao "movimento espírita".
Quando lançou o livro O Voo da Esperança, o médico e "médium " Woyne Figner Sacchetin, de São José do Rio Preto, atribuindo a "psicografia" a uma estranha autoria de Alberto Santos Dumont, ele também acusou as vítimas de um acidente do voo da TAM, ocorrido em 2007, de terem sido romanos sanguinários do século II. Usou "vidas passadas" para justificar a tragédia, o que ofendeu algumas famílias das vítimas, que moveram um processo judicial.
O livro saiu de circulação. O mesmo Woyne havia lançado também um livro sobre Juscelino Kubitschek, JK - Caminhos do Brasil, no qual imitou direitinho a narrativa do ex-presidente que mandou construir Brasília. Deve ter lido Manchete adoidado.
A narrativa é verossímil, mas comete, pelo menos, uma séria falha: quando foi perguntado pelo Toniquinho da Farmácia, no comício em Jataí, Goiás, se Juscelino, caso eleito presidente, cumpriria o artigo constitucional que determinava a construção de Brasília, o então candidato hesitou alguns segundos para responder. O "espírito" disse que "respondeu sem hesitar".
Mas existem outros casos. A própria tragédia do circo de Niterói, o Gran Circo Norte-Americano, em 17 de dezembro de 1961, é de responsabilidade do próprio Chico Xavier. Lançando o livro Cartas e Crônicas, com a habitual usurpação do nome de Humberto de Campos, dissimulada pelo codinome "Irmão X", Chico acusou as vítimas do criminoso incêndio de terem sido romanos sanguinários em "vidas passadas". O "puríssimo médium" cometeu muitas crueldades com isso.
Primeiro, logo um "médium" conhecido por sua humildade acusou gente humilde de ter sido uma multidão de "aristocratas sanguinários". Segundo, Chico se esqueceu de sua tão alegada qualidade de "misericordioso" e fez acusação tão leviana e perversa evocando uma época distante, como se uma tragédia contemporânea significasse uma "vingança" de algo feito numa época muitíssimo antiga.
Outra crueldade foi inventar tudo isso e atribuir responsabilidade a um autor falecido, ainda mais um Humberto de Campos cujo estilo pessoal nunca se reconhece nas ditas "obras espirituais", uma obviedade que os juízes de 1944 tiveram a preguiça de reconhecer e que poderia muito bem ter condenado Chico Xavier e evitado que ele se tornasse o "semi-deus" do imaginário religioso das últimas décadas.
E olha que não falamos de certos equívocos da compreensão espírita, como a não-existência de "resgates coletivos" - as vítimas do incêndio do circo, de procedências tão dispersas e diversas, dificilmente poderiam cumprir juntas um mesmo destino nem terem vivido juntas outras épocas - ou o fato de que os "espíritas" atribuem as vidas passadas no achômetro, como fazem "mediunidade" de faz-de-conta, sem apreciar corretamente os ensinamentos de Allan Kardec.
Portanto, não existe essa coisa de "certos espíritas não entenderam direito" se vemos que a deturpação é generalizada e envolve até mesmo Chico Xavier e Divaldo Franco, este capaz de acreditar numa bobagem como "crianças-índigo", uma farsa tão ridícula que o casal que o inventou se divorciou quando o sucesso financeiro gerou um conflito de interesses.
Por isso, entendemos que a pediatra deva ser punida pessoalmente, sim. Mas devemos admitir, também, que esse é o preço caro que a deturpação do "movimento espírita", que sempre achou "natural" catolicizar o legado kardeciano, pela desculpa da "identificação aos ensinamentos cristãos", estabelece ao seu movimento.
Esse moralismo cruel, que levou uma pediatra a acusar uma vítima de estupro de ter sido a própria culpada, vem dos próprios livros "espíritas" feitos no Brasil (inclui os de Chico Xavier), que temperaram com o dado católico do moralismo severo meras alegações de vidas passadas trazidas pelos trabalhos espíritas europeus, a partir da própria obra de Kardec. Portanto, o erro da pediatra é, também, o erro do "movimento espírita" do Brasil no conjunto da obra.
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