MITO DO "BONDOSO MÉDIUM" TEM CERCA DE 45 ANOS E HABITA O IMAGINÁRIO DA CONFUSA CLASSE MÉDIA QUE COMANDA O "SENSO COMUM" NO BRASIL.
Engana-se quem acha que o suposto médium Francisco Cândido Xavier representa o novo em termos de religiosidade, espiritualidade ou até mesmo intelectualismo. Quanto à religiosidade, ela é sempre conservadora e simboliza sempre o que é antigo e, não raro, obsoleto ou decadente em termos de valores morais, mas Chico Xavier leva isso às mais derradeiras consequências.
Com um mito construído há, pelo menos, 45 anos, nos moldes importados de Malcolm Muggeridge (que inventou o mito "caridoso" de Madre Teresa de Calcutá), Chico Xavier repousa no imaginário popular como uma espécie de "fada-madrinha para adultos", o que cria uma contradição nos pais que reprovam que suas meninas endeusem princesas da Disney. Os próprios adultos seguem uma idolatria ainda pior, relacionada ao "bondoso médium".
O mito de Chico Xavier é uma construção organizada, linear, o que cria uma zona de conforto na percepção daqueles que, até certo ponto esclarecidos e até com relativo avanço no senso crítico, empacam quando veem na frente um mito religioso marcado pela "fascinação obsessiva" e pelas tentadoras vibrações do "bombardeio de amor", exercidas pela imagem do "médium" mineiro.
No texto "Cinetanatologia: imagens do pós-morte no cinema falam mais dos vivos do que dos mortos", do portal Cinegnose, o semiólogo Wilson Roberto Vieira Ferreira continua passando pano em Chico Xavier, não com o entusiasmo complacente de antes, mas com uma complacência mais discreta, ao fazer uma comparação do seriado Forever com o livro Nosso Lar, a respeito da abordagem da vida após a morte:
"A série vai ao encontro de experiências pós-vida muito relatadas pela literatura espírita. Principalmente na série “Nosso Lar”, de André Luis e psicografada por Chico Xavier, há vários episódios em que pessoas despertam do outro lado acreditando ainda estarem vivas e tentam retomar suas rotinas como se nada tivesse acontecido. Claro, que sempre algum mentor espiritual entra em cena para explicar o que está acontecendo".
Esquece Wilson Roberto de várias coisas. Primeiro, que Nosso Lar é um plágio de |A Vida Além do Véu (The Life Beyond the Veil), do britânico George Vale Owen, temperado com o igrejismo de Chico Xavier mais o eruditismo de Antônio Wantuil de Freitas e Manuel Quintão e das dicas "futuristas" do então menino-prodígio Valdo Vieira, fã de revistas de ficção científica.
Nosso Lar, de 1943, não é uma abordagem de "mortos tentando retomar suas rotinas como se nada tivesse acontecido", mas uma grande pegadinha semiótica. Ele inverte a dicotomia manifesta no livro Admirável Mundo Novo (Brave New World), de Aldous Huxley, lançado no mesmo ano de 1932 de Parnaso de Além-Túmulo.
Em Admirável Mundo Novo, a "civilização" é descrita como um ambiente contestável e majoritariamente negativo, enquanto as "reservas históricas", espécie de "periferia" do enredo, é um reduto de pessoas injustiçadas, que não se ajustaram às determinações dominantes do "mundo novo".
Em Nosso Lar, a lógica se inverte em relação ao livro distópico. A colônia ou cidade "espiritual" que leva o nome do livro é considerada um ambiente "acolhedor" e "solidário", descrito como um lugar assistencial e recuperador de almas falidas. Enquanto isso, a "periferia", descrita sob o nome de "umbral", seria associada a imagem do que o "senso comum" acredita ser o Inferno católico.
Em dado momento, Wilson Roberto escreveu, no mesmo texto, antes da menção do livro "espírita":
"Sempre imaginamos o morrer um momento grandioso, conclusivo, síntese, julgamento, passagem para uma dimensão mais grandiosa. Algo assim muito ligado aos sistemas escatológicos das religiões salvacionistas – de “Escatologia”, parte da Filosofia ou Teologia sobre o estudo do fim".
Esquece ele que Nosso Lar não é um livro científico e que reflete justamente essa estrutura "escatológica" das religiões salvacionistas (das quais o "espiritismo" brasileiro se insere, com gosto). Além disso, Nosso Lar se insere nos filmes que Wilson Roberto, mencionando uma pesquisa da estudiosa Amanda Shapiro, foram produzidos na década de 1940, dotados de uma carga moralista própria do tempo em que os EUA saíram como os maiores vencedores da Segunda Guerra Mundial.
Em outras ocasiões, Wilson Roberto passou pano em Chico Xavier quanto ao pretenso profetismo da "data-limite", corroborado pelo seu amigo e colega acadêmico Nelson Job. Os dois ignoram que a "profecia", além de contrariar a Codificação no que se diz à "predição de datas determinadas para acontecimentos futuros", consistindo em ação de "espíritos inferiores", ela é cheia de grosseiros erros históricos e sociológicos.
Não custa informar para os desavisados acadêmicos que a "profecia" de Chico Xavier menciona episódios de caráter duvidoso, como a exterminação do Hemisfério Norte, por terremotos, vulcões, furacões e maremotos, de maneira linear, enquanto países como o Chile sairiam "ilesos", o que é um absurdo. O Chile faz parte do Círculo de Fogo do Pacífico, e, se locais como o Japão, a Califórnia (EUA), a Islândia e o Sul da Itália forem destruídos pelas atividades vulcânicas, o Chile também desapareceria.
Outro aspecto é a risível atribuição de que, havendo a destruição do Hemisfério Norte, populações dos EUA iriam migrar para a Amazônia. Isso é ridículo. Em termos sociológicos e antropológicos, essas populações migrariam para o Sudeste brasileiro, sobretudo as grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, com padrões de vida, similares aos do povo norte-americano.
MITO "CERTINHO"
A reputação de Chico Xavier está associada a uma abordagem certinha, da qual tudo parece bem organizado e coerente, combinando, em suposto equilíbrio, atribuições de intelectualidade, altruísmo e religiosidade que garantem a produção incessante de memes e outras mensagens favoráveis nas redes sociais, como no Facebook e no Instagram, além da enxurrada de vídeos chapa-branca no YouTube.
Aspectos considerados incômodos para a reputação do "médium" são escondidos sob o tapete, e, por isso, excluídos da narrativa oficial que "encanta" muitos brasileiros. O julgamento do caso Humberto de Campos, em 1944, é mencionado superficialmente, e, ainda assim, com uma forçada analogia ao (fictício) julgamento de Jesus Cristo por Pôncio Pilatos (cuja existência nunca foi confirmada pelas fontes referentes ao Império Romano, na época do falecimento de Jesus).
Por outro lado, há uma seleção de frases bonitinhas de Chico Xavier, aquelas que envolvem apelos de positividade tóxica (fenômeno no qual se força a barra acreditando em um otimismo e uma alegria em momentos que não se permitem tais sentimentos). As narrativas em prol do "médium" são superficiais, sua suposta caridade é mencionada insistentemente, sem apresentar provas e sempre num discurso especulativo e sem fundamentação, sempre apostando em apelos mais agradáveis do que reais.
Há, também, lembranças de quem convivem com o "médium", fotos dele com personalidades diversas, enfatizando geralmente a época em que Chico Xavier deixou de ser uma figura pitoresca e repugnante para ser um mito "adorado por todos", mais ou menos o ano de 1976, quando se desenvolveu o mito do "médium fada-madrinha".
Foi justamente em 1976 que as religiões neopentecostais e o "movimento espírita" teriam recebido, provavelmente, financiamento da ditadura militar para se fortalecerem como seitas religiosas, sob a desculpa da "diversidade religiosa". Mas a ascensão de Edir Macedo, R. R. Soares e Chico Xavier se deu por outro motivo: tentar enfraquecer, com a concorrência religiosa, o ativismo que estava sendo feito pela Teologia da Libertação católica, que atuava como forte oposição à ditadura militar.
De maneira enganosa, muitos confundem "espiritismo" brasileiro como sendo uma "nova Teologia da Libertação", e, através dessa narrativa, Chico Xavier é visto erroneamente como "progressista", se esquecendo do lado oculto de sua obra doutrinária, da qual ideias correspondentes ao trabalho precário, à submissão hierárquica e à conformação com a própria desgraça são defendidas, dentro dos princípios da Teologia do Sofrimento, corrente radical do Catolicismo da Idade Média.
O grande problema é que essa narrativa que remoldou Chico Xavier num mito considerado enxuto e simples, para a fácil e confortável (embora equivocada em muitos aspectos) compreensão dos incautos, não teve o contraponto de uma mídia capaz de criar um outro discurso, se lembrando de aspectos profundamente negativos do "médium", como a defesa radical da ditadura militar e a morte suspeita do sobrinho Amauri Xavier (que merece investigação, apesar do caso ser judicialmente prescrito).
Ou seja, o mito de Chico Xavier foi beneficiado por uma mídia monolítica, que na ditadura militar se empenhava numa única narrativa. O "médium" teve seu mito atual produzido, com habilidade de ficção novelesca, pela Rede Globo de Televisão a partir do Globo Repórter, em 1978, no qual foram usados os mesmos métodos discursivos que Malcolm Muggeridge usou para promover Madre Teresa de Calcutá.
A fabricação do mito de Chico Xavier, dessa forma organizada e digestível para o grande público - dentro do conceito de forjar idolatria religiosa para anestesiar multidões - , foi também corroborado por concorrentes da mídia conservadora, seja na imprensa escrita ou televisão, para dar uma impressão de pretensa objetividade.
Depois disso, desenvolveu-se um lobby no qual é proibido contestar o mito de Chico Xavier através de meios considerados formadores de opinião: jornalistas investigativos, acadêmicos e juristas são movidos até pela subjugação (um tipo de obsessão espiritual), já que foram acostumados a, dominados pelo mito do "bondoso médium", evitarem qualquer tipo de investigação profunda quando o nome do "médium" lhes aparece na frente. Quase que pelo piloto automático de seus instintos, eles se recusam a fazer qualquer investigação que ameace o mito confortável de Chico Xavier.
BRASILEIROS DESINFORMADOS E RELIGIOSAMENTE SUBMISSOS
O que favorece a prevalência do mito de Chico Xavier é o predominante conservadorismo existente no Brasil, que aparece oculto até mesmo em pessoas que parecem, à primeira vista, modernas e progressistas. É assustador verificar que, eventualmente, personalidades como a atriz Rita Guedes e o radialista de rock Paulo Sisino divulguem frases do "médium", sem o cuidado de expor mensagens de positividade tóxica trazidas pelo beato mineiro. Para não dizer as passagens de pano do semiólogo Wilson Roberto, mais cauteloso e contestador em outros momentos.
Culturalmente, o Brasil está passando por uma deterioração acelerada, profunda e descontrolada, onde no âmbito musical é representada pela bregalização em diversos estilos - e que faz com que bregas vetaranos do nível de Michael Sullivan, Gretchen, Alexandre Pires e Chitãozinho & Xororó passem a simbolizar uma falsa genialidade musical - e, no âmbito comportamental, propicia a multiplicação de subcelebridades.
A classe média que movimenta as redes sociais e é considerada "formadora de opinião" e "produtora de bom senso" é dotada de profunda ignorância, e isso vale tanto para bolsonaristas que produzem fake news e "discurso de ódio" quanto para as esquerdas acomodadas e infantilizadas que acham que Lula vai vencer a corrida presidencial sem um pingo de esforço.
Vemos essa predominância da idiotização "esclarecida" da classe média contaminada pelo Mal de Dunning-Kruger, que se recusa a sair das zonas de conforto enquanto, de forma burra e egoísta, aconselha os outros, como "ruptura de zonas de conforto", a abrir mão do que os outros gostam e acham necessário.
É por isso que, mesmo nas relações de morte, temos a desigual e burra percepção de que a tragédia humana é "privilégio dos bons", enquanto temos, por exemplo, feminicidas de 80 e tantos anos como Pimenta Neves (gravemente enfermo), Roberto Lobato e Lindomar Castilho, que podem morrer a qualquer momento, mas são vistos como "meninos saudáveis e bem nutridos" como se tivessem muitos anos pela frente. É surreal ver que jornalistas relativamente mais saudáveis que Pimenta Neves, como Artur Xexéo e Paulo Henrique Amorim, morreram com menos idade que o assassino de Sandra Gomide.
É a burrice e a estupidez de uma classe média que julga que tem a verdade em suas mãos e não abre mão de formas já decadentes de compreensão e visão de mundo. E é isso que faz com que mesmo pessoas relativamente modernas sucumbam a uma religiosidade que cheira a mofo tóxico, como é a de Chico Xavier e seus trajes cafonas com paletós velhos e perucas ou bonés bregas, além de ideias religiosas e morais ainda mais velhas e antiquadas.
Só mesmo uma sociedade como a brasileira, antiquada e velha em muitos aspectos, para valorizar Chico Xavier como um ídolo religioso e símbolo de uma "caridade" da qual ninguém viu provas consistentes, mas todos definem como se fosse uma "verdade absoluta e indiscutível".
Chico Xavier representa o que há de velho e antiquado na já velha e antiquada religiosidade brasileira, e se a sociedade brasileira o idolatra, de forma assumida ou disfarçada, de forma sectária ou distanciada, é porque a sociedade brasileira também está velha e antiquada, não sendo exagero dizer que as redes sociais e o senso comum dos brasileiros ainda estão presos na Idade Média ou, na melhor das hipóteses, nos preconceitos aristocráticos do século XIX.
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