
"Nem tudo é lógica, tem coisas que só o coração entende melhor", dizem algumas pessoas, no contexto atual de buscar agendas supostamente positivas, depois de um tempo de intensos retrocessos sob Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Num cenário de absurdos, em que se aceitam livros fake que contenham mensagens cristãs e se tem medo de ver feminicidas morrendo e suas mortes serem noticiadas e "wikipedizadas", vemos que os brasileiros parecem viver num mundo em que necessitam ter uma quota de prejuízos, mediocridade, sordidez, escândalos e tudo o mais, sob o pretexto de que a vida "não tem graça sem isso".
E aí temos uma sociedade brasileira que nunca vai além do "mais ou menos", o complexo de vira-lata que soa como uma doença incurável. A ideia hipócrita de que temos que perder o preconceito contra tudo que é pior, por causa daquele papo de "gente como a gente". Mas isso não é ter preconceito contra quem é mais simples e normal na vida?
A sociedade brasileira está idiotizada e ela mantém os paradigmas de 40 anos atrás. Nunca saímos, de verdade, de 1979, e, como os tempos mudam e o mundo se transforma, aquela "normalidade" que combinava com o contexto da época hoje se transformou numa insanidade mental, pelo desespero neurótico e surreal de nos apegarmos a totens e paradigmas de então, que temos medo de ficarem obsoletos ou mortos.
Daí que temos pessoas de esquerda com valores culturais de centro-direita. Pessoas paranoicas só de perceber que aquele velho feminicida que virou notícia nos anos 1970 está perto da morte. Ou ver que aquele "médium" (sim, estamos falando de Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier) só produzia livros fake atribuídos falsamente a pessoas mortas.
Antes essas pessoas preferissem que todo o trio central bossanovista - Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto - estivesse falecido e a Petrobras caminhasse para a extinção, do que ver o velho feminicida morrer consumido por um câncer devastador. Ou preferir que bandas de rock alternativo se aposentassem do que aquele canastrão ídolo brega caísse no ostracismo. Ou preferir que a reputação de Chico Xavier caísse, por conta de livros fake e ideias reacionárias.
As pessoas, no Brasil, salvo exceções, não sabem o que querem. Há muitos bolsomínions enrustidos, gritando "Lula Livre" e fingindo odiar o Luciano Huck. Há pessoas de elite que, por puro pretensiosismo, só querem se assumir "de esquerda", porque fica mais moderno, mais descolado, pega mal assumir algum direitismo.
As pessoas escondem suas neuroses, seus traumas, suas tramoias, e todo mundo quer ser bom moço, progressista, moderno, futurista, alternativo, diferenciado e até mesmo nerd. A palavra "nerd" ficou tão banalizada que deixou de se referir àquele rapaz problemático de óculos para ser, agora, o fanfarrão que adora jogos eletrônicos, seriados de TV e heróis de quadrinhos. O "nerd" de hoje não é necessariamente o coitado com dificuldade de conquistar a mulher desejada, mas o fanfarrão que fica pegando qualquer uma nas noitadas.
Sim, é com esse estado de espírito, meio libertino, meio beato, que caminha o Brasil pós-bolsonarista, dentro daqueles vícios que nunca se desfazem. São os mesmos vícios que promoviam o bolsonarismo latente de 2016, e que se explicitou em 2018, mas que agora dão lugar a um progressismo de fachada, meio o carnaval "identitário" das esquerdas "namastê", meio a "caridade" espetacular do Caldeirão do Huck.
Tudo isso se sustenta, agora, com a falácia da "tolerância", da "fraternidade", da "paz", palavras sem dúvida muito bonitas mas que, jogadas no ventilador, podem ser usadas de maneira traiçoeira. Imagine a "fraternidade" da raposa com a galinha? A raposa doando seus dentes e a galinha, o seu corpo. Tudo em paz, numa paz sem voz para não atrapalhar a tranquilidade dos gananciosos.
NADA DE CÉREBRO: A DISPUTA DO CORAÇÃO E DO FÍGADO NAS ATRIBUIÇÕES DO RACIOCÍNIO HUMANO
O surrealismo só é um drama e um problema grave em longa-metragens poloneses, tchecos, suecos etc. Franz Kafka era o que hoje chamamos de tcheco, então um austro-húngaro. O absurdo só é trágico nessas regiões frias da Europa. No Brasil, o absurdo é um ideal de vida, uma possibilidade positiva ou de lição moralista para os chamados brasileiros médios.
Se o absurdo permitiu agendas "negativas", um "moralismo sem moral" e o cancelamento de conquistas sociais históricas - da Petrobras à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) - , hoje ele apela para uma agenda mais "positiva", hoje a ideia é defender uma "caridade mais segura", que evite mexer nos privilégios das elites, "muito boazinhas", para "ajudar" os pobres sem que se "dê demais" para eles.
O Museu Nacional foi destruído pelas chamas? Parte da floresta amazônica se destruiu pelo fogo? Veteranos da MPB autêntica - aquela que vai além do feijão-com-arroz dos crooners de restaurantes - estão morrendo aos poucos? Empresas de ônibus entram em falência escondidas no circo da corrupção empresarial sob a lona da pintura padronizada (aquela que esconde empresas sob uma mesma pintura)? Pobres inocentes foram mortos por balas "perdidas" nas favelas? O pré-sal será adquirido todo pelas petrolíferas estrangeiras? Tudo bem.
O figurante de novela, jovem, saudável e tranquilo, morre de infarto? Tudo bem. O que não pode é feminicida que fumou demais, usou drogas e se embriagou no passado, perdeu um rim e tem pulmão fraco morrer antes dos 90 anos. O jornalista feminicida que ingeriu overdose de remédios, contraiu diabetes e câncer na próstata, e também está "proibido de morrer", mas o outro jornalista, bonachão e com muito senso de humor, "pode" morrer de infarto.
Infarto é para pessoas tranquilas, assassino rancoroso "não" pode sofrer infarto. Se o corpo pede para sair, que aguente uns trancos. Se o assassino passa a vida descuidando da saúde, ele não contrai câncer, vira youtuber, astro do Instagram, ganha conta no Twitter, ainda que já esteja morto - de preferência sob o silêncio da imprensa - e tenha um ghost writer se passando por ele nas redes sociais. Até feminicida ou jagunço do século XIX tem que "estar vivo", na referida encarnação, e bater ponto nas postagens digitais e esperar que o deep fake produza suas "novas imagens".
Dane-se a Ciência e a Natureza que avisam que também morre quem atira. Dane-se a Lógica e o Bom Senso. Que se "autentiquem" ou, ao menos, ganhem status de "autenticidade" mesmo sob dúvidas pendentes, as obras fake de Chico Xavier e companhia, que prometem trazer obras inéditas dos mortos, só porque têm mensagens "positivas".
As pessoas parecem se rebelar de terem um cérebro e poderem raciocinar. Querem se apegar em fantasias, devaneios, querem manipular o pensamento desejoso. Querem brigar com os fatos, achar que podem combater a realidade porque ela é desagradável e amarga, e com isso que se criem terrenos para a fantasia, onde se proíbe a entrada da Razão. A Razão que fique boazinha e não se meta nos caprichos da Fé, sob pena de ser acusada de "amaldiçoada".
Com isso, vemos que o surrealismo, a supremacia do Absurdo sobre a Realidade, é visto como tragédia só em países desenvolvidos situados em regiões frias na Europa. Aqui o Absurdo é uma festa, é sinônimo de esperança e anima o Brasil, ao mesmo tempo considerado o país mais otimista do mundo e um dos países mais ignorantes da Terra. Deixemos o drama surreal para tragédias cinematográficas polonesas, eslavas e suíças.
Enquanto isso, uma "frente ampla" social, política, cultural e religiosa se emerge nos escombros do bolsonarismo e do lavajatismo e, das "esquerdas namastê" aos "coxinhas arrependidos", vemos gente cultuando da maconha a Chico Xavier, do "funk" à Madre Teresa de Calcutá, criando um "progressismo de fachada" no qual ser de esquerda é bom só para as elites paternalistas, o povo pobre que busque seu "esquerdismo" fazendo preces e esperando a "mão amiga" de um elitista.
Sob os cadáveres de Agatha, Amarildo e um sem-número de inocentes mortos pelo abuso policial há décadas, surgem nas elites uma "sociedade boazinha" que permite uma "caridade de fachada" que evite mexer nos tesouros dos mais ricos.
Trata-se de uma "caridade" que nem os religiosos fazem, porque eles ficam também no seu bem-bom, viajando e sendo sustentados por outros como se fossem paxás. São seus adeptos que precisam tirar do próprio bolso os recursos para os donativos de cada dia, apenas para "aliviar a dor" dos mais necessitados, sem que eles deixem de ser essencialmente pobres.
Tudo parece confortável, dentro de uma quota de prejuízos, retrocessos, desastres, gafes etc que dão ao Brasil um glamour de sua própria mediocridade. O complexo de vira-lata continua, desde que obtenha o reconhecimento de um elevado pedigree. Só um reconhecimento, um título formal. Na prática, tudo tem que se permanecer na mediocridade e no surrealismo de um país em que pessoas não apenas estão falando de jantar, ocupadas em nascer e morrer, mas, agora, vendo bobagens supérfluas nos seus celulares. Pelo jeito, os brasileiros estão vendo WhatsApp demais.
Comentários
Postar um comentário