
A página "Espíritas à Esquerda" do Facebook é, a princípio, muito bem intencionada, aparentemente voltada à defesa dos direitos humanos e o diálogo com a teoria espírita. No entanto, nota-se que seu conteúdo, no conjunto da obra, apresenta problemas.
Isso porque é muito difícil "esquerdizar" o "espiritismo" brasileiro. Cria-se uma gororoba ideológica porque se ignora que a raiz do Espiritismo que é feito no Brasil é roustanguista. A história do "espiritismo" brasileiro se fundamentou nas ideias de Os Quatro Evangelhos de Jean-Baptiste Roustaing, que forneceu subsídios para a "catolicização" da Doutrina Espírita.
Ao longo dos tempos, o roustanguismo, antes explícito e entusiasmado, passou a ser mais enrustido. Apesar do nome Roustaing ter virado um palavrão entre os "espíritas", seu legado foi quase todo absorvido, com impressionante boa vontade, diante de dois artifícios que conseguiram mascarar Roustaing e botar o "espiritismo catolicizado" como se fosse uma "saudável e inocente adaptação" do Espiritismo original francês.
Primeiro, porque vieram traduções que "podaram" o pensamento de Allan Kardec, minimizando o cientificismo de suas ideias. Guillón Ribeiro e Salvador Gentile foram os principais e têm maior presença nas livrarias de todo o Brasil.
Segundo, porque foi designado um escritor para adaptar as ideias de Roustaing conforme as crenças e valores difundidos no Brasil. Esse sujeito, Francisco Cândido Xavier, escreveu seus livros com a própria mente, com a ajuda de parceiros que não eram do além-túmulo, mas da Terra: Antônio Wantuil de Freitas, Waldo Vieira, Manuel Quintão, Luís da Costa Porto Carreiro Neto e outros.
A atribuição de "autoria espiritual" era só um truque para impressionar as pessoas, provocando sensacionalismo e mistificação (já desaprovados pela literatura kardeciana original). Além do mais, eram evidentes os problemas relacionados aos aspectos pessoais dos autores alegados, dando a impressão de que o espírito, quando volta ao mundo espiritual, perde sua individualidade e até sua caligrafia deixa de ser a mesma.
Com um Kardec "domesticado" e um roustanguismo "adaptado" por Chico Xavier, dá para vender esse sub-Catolicismo que é o "espiritismo" brasileiro como se fosse "autêntico". Como a religião prega "coisas boas", como a "caridade" e a "paciência", ninguém desconfia das traições cometidas contra o pensamento kardeciano, as pessoas vão dormir tranquilas porque, sobre o Rio de Janeiro dos milicianos, flutua um condomínio de luxo no "mundo espiritual", chamado Nosso Lar, que supostamente seria o destino "fatal" para todos os brasileiros.
Só que essa falta de discernimento cobra o preço caro da decepção. E o suposto fenômeno dos "médiuns de direita", trazido não só por Divaldo Franco mas professo também pelo "forasteiro" João Teixeira de Faria, o João de Deus - que muitos acreditavam ter sido "amigo do ex-presidente Lula" (factoide plantado pela mídia de direita), mas apoiava a Operação Lava Jato e o então juiz Sérgio Moro, hoje ministro de Jair Bolsonaro - e pelo antigo discípulo de Chico Xavier, Carlos Baccelli.
Só que os "médiuns de direita", vistos como "exceção à regra", de um suposto "espiritismo sem lados ideológicos, mas amplamente unificador", são, na verdade, a regra de um "espiritismo" que é reacionário, não apenas pelas opiniões pessoais dos "médiuns", mas porque elas têm, do contrário que muitos imaginam, aplicação doutrinária.
Insistimos em dizer que Chico Xavier foi pioneiro dos "médiuns de direita". Muitos falam mal de falsos profetas "espíritas", de gente especulando quem foi quem nas vidas passadas e fazendo joguinho para saber quem foi quem no tempo de Jesus, de gente consultando redes sociais e papeando com parentes de gente morta para produzir falsas psicografias etc. Temos que admitir: Chico Xavier foi pioneiro em tudo isso, ele atirou a primeira pedra na vidraça e, só porque fugiu, não pode ser isento de culpa pelos exageros cometidos por "espíritas" hoje.
Chico Xavier foi um direitista com um apetite reacionário que choca a todos. As pessoas que se baseiam na imagem adocicada de sua pessoa se revoltam ao saber que ele defendeu até o AI-5 e que, se vivesse em 2018, teria apoiado Jair Bolsonaro. Mas a verdade é que o conservadorismo de Chico Xavier, além de pleno, era explícito, escancarado e, digamos, bastante orgânico.
Tudo prova esse conservadorismo em Chico Xavier. As raízes familiares, a formação religiosa, a sociedade do seu tempo, e isso se soma às ideias manifestas por ele. Seu reacionarismo não foi apenas manifesto pelo apoio à ditadura militar e ao AI-5, pelo comparecimento, com gosto e sem escrúpulos, às homenagens que os militares fizeram a ele, pela adesão de um suposto "médium pacifista" a quem oprimia o povo, e pelo pioneiro anti-petismo que Chico Xavier expressou nas últimas décadas de vida.
"VIDA MELHOR" LONGE DO TEMPO E DO ESPAÇO
O conservadorismo de Chico Xavier sempre teve aplicação doutrinária. Não era um capricho de opinião pessoal "fora das atividades espíritas". O conservadorismo estava dentro de seus livros, e também não adianta botar culpa em Emmanuel, o "bode expiatório" para todo o reacionarismo em Chico Xavier, que fazia do "médium" o único brasileiro que podia errar à vontade (inclusive com prejuízos sérios, sobretudo à memória dos mortos) que era isento de culpa.
Não. Independente das teorias que questionam até a "psicografia" atribuída a Emmanuel, os "espíritas", em consenso, afirmam que, se realmente o jesuíta é autor espiritual dos livros a ele creditados, Chico Xavier sempre concordou com todas as ideias manifestas no livro.
Essas ideias envolvem o trabalho exaustivo, a resignação com os abusos do opressor etc. Segundo Chico Xavier, a opressão e o martírio só seriam extintos por determinação de Deus, cabendo ao sofredor a aceitação de sua situação infeliz até que "um dia" a "luz divina" chegue a essa pessoa, geralmente "tarde demais" (e isso quando não é a encarnação seguinte).
Isso é um pensamento conservador. Mas como Chico Xavier manipulava o discurso com palavras suaves, as pessoas eram enganadas. Havia a ilusão da "vida melhor" em um contexto desconhecido, porque fora do tempo e do espaço. Algo que não nos é tocável, uma possibilidade que, supostamente, é vindoura, mas que nunca vem.
Chico Xavier tratou, com tais ideias, as pessoas sofredoras como crianças em castigo. Se as "crianças" aguentarem todo o castigo imposto sem limite definido de tempo, "Papai do Céu" depois decide quando esse castigo terminará. Seja ele o sofrimento de episódios como a viuvez de certos homens, o roubo daqueles bens necessários, o assassinato de algum ente querido, a humilhação excessiva no ambiente de trabalho ou nas redes sociais da Internet. Ou seja a ditadura militar.
Daí que Chico Xavier não defendeu a redemocratização (ele esperava que Deus é que decidisse por isso), e é assustador que seus seguidores atribuam a ele uma imagem "progressista" que nunca existiu em sua pessoa, mas que se sustenta como uma pretensa unanimidade a partir de uma simbologia artificialmente construída, com base no que o inglês Malcolm Muggeridge fez com Madre Teresa de Calcutá e que a Rede Globo adaptou para promover o "médium" brasileiro.
PALAVRAS SOLTAS
Daí que o "espiritismo de esquerda" é apenas uma ponte construída com bases frágeis. A referida página do Facebook é apenas um amontoado de postagens soltas, algumas emulando o pensamento da mídia esquerdista, outras mencionando atividades "espíritas".
Descontando exceções lúcidas como Sérgio Aleixo e Dora Incontri, não há uma produção de conteúdo. Franklin Félix parece ter se inspirado nos colegas que, na Carta Capital, fazem o blog Farofafá, no qual dois jornalistas, Pedro Alexandre Sanches e Eduardo Nunomura, não parecem produzir conteúdo de esquerda, apenas embarcando em pautas alheias para se promoverem.
Nesse sentido, vemos apenas fios soltos ligados de maneira superficial. Alegações soltas, de um lado um socialismo combativo, de outro um "espiritismo" resignado. As palavras não se ligam, apenas a alegação superficial de palavras soltas como "caridade", "humanismo", "direitos humanos" e "amor ao próximo" que são mencionadas com forte teor emocional, mas sem sustentação racional consistente, sem argumentos concisos, precisos e aprofundados.
A ligação é artificial e todos os "argumentos" que são feitos - vide os textos de Franklin Félix na coluna "Diálogos da Fé", da Carta Capital - são meramente subjetivos, sem fundamentação e apenas meramente apelativos. Não há coerência nas alegações e tudo soa muito vago, nas associações teóricas de "caridade cristã", por exemplo, com a causa socialista voltada à melhoria de vida das classes populares.
Para piorar, enquanto as ideias de fachada - "fraternidade", "qualidade de vida", "progressista", "amor ao próximo", "defesa da paz" - parecem se combinar perfeitamente, quando se vai nos pormenores a coisa resulta em conflito. Enquanto as esquerdas defendem que o povo se mobilize em protestos para combater a opressão, o "espiritismo" defende o contrário, recomendando a conformação e a prece para que Deus resolva as injustiças existentes.
Quando os "espíritas à esquerda" evocam Chico Xavier, então a coisa resulta num completo desastre. Os "espíritas" que assim agem ficam nervosos, seus argumentos são sem pé nem cabeça, se comportam como "bolsomínions" sem serem bolsonaristas, porque, por associação, Chico Xavier e Jair Bolsonaro tiveram um passado arrivista semelhante e se afinam em quase todas as ideias ultraconservadoras.
"Esquerdizar" a pessoa de Chico Xavier cria um falso peso na consciência. Os chiquistas "de esquerda" ficam paranoicos, precisam fazer concessões e trabalhar o pensamento desejoso. São obrigados a admitir que Chico Xavier não era "semi-deus" nem "salvador da pátria", mas ainda lhes dói no coração a ideia de que ele foi um reacionário dos mais convictos e firmes.
Daí que os chiquistas que assumem seu direitismo são muito mais tranquilos. Podem agir com histeria contra o esquerdismo, mas quanto à coerência de ideias, elas lhes dão paz na consciência e coerência nos argumentos apresentados. Por piores que sejam, os seguidores direitistas de Chico Xavier não precisam brigar com os fatos. Seu ídolo sempre foi tão direitista quanto eles.
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