
Num momento em que o restante da América do Sul reage ao golpismo político com o povo indo para as ruas e pressionando as autoridades conservadoras para renunciarem ao poder ou para recuar de medidas consideradas anti-populares, o Brasil prefere ficar na prece. Se isso partisse de setores das direitas que manipulam as classes populares, tudo bem, mas o que vemos é que eles partem, de forma surreal, de setores das esquerdas.
Está sendo lançado o livro Lula e a Espiritualidade, organizado pelo jornalista do Brasil 247, Mauro Lopes, a partir de sua participação numa entrevista com o ex-presidente quando ele estava preso em Curitiba. O livro conta com 24 textos de diferentes personalidades religiosas.
Dos chamados "espíritas", encontramos dois espíritas autênticos, Sérgio Aleixo e Dora Incontri, cujas ideias se aproximam mais do espiritismo francês. Por outro lado, há outros oscilantes, como Franklin Félix e Carla Pavão, que parecem se aproximar do "espiritismo" brasileiro, criando problemas graves de percepção.
Isso porque o "espiritismo" brasileiro está centralizado na figura ultraconservadora de Francisco Cândido Xavier, uma das personalidades mais conservadoras de toda a História do Brasil. E se muitos acreditam que as opiniões direitistas de Chico Xavier não têm efeito doutrinário, estão profunda e absolutamente enganados.
Os livros de Chico Xavier - deixemos de lado as atribuições, duvidosas, de autoria alheia, porque as ideias são do "médium", que sempre apoiou ou consentiu com abordagens ultraconservadoras, independente de se acreditar ou não nessas supostas autorias - são verdadeiros manuais de moralismo ultraconservador, fundamentados na Teologia do Sofrimento, apoiada pelo "médium".
São ideias relacionadas à ideia de suportar o sofrimento "sem queixumes" (nas palavras do "médium"), mesmo em situações como o trabalho exaustivo. Chico Xavier foi o que primeiro e mais propagou a ideia de que o sofredor de desgraças e misérias sociais estava "pagando dívidas espirituais", o que é, aliás, herança do moralismo punitivista de Jean-Baptiste Roustaing que o "médium" mineiro tinha medo de assumir sua influência.
Até a "cura gay" está presente em Chico Xavier, que definiu o homossexualismo como um estado de confusão mental de pessoa que reencarna em gênero diferente do da encarnação anterior. Chico, que propõe sempre que o ser humano seja obediente a Deus, não foge a essa regra, aconselhando o reencarnado a aceitar os desígnios divinos dados à condição sexual biológica no nascimento. Ou seja, se a mulher reencarnou como homem, tem que se adaptar a esta condição determinada por Deus.
Há sérios problemas em "esquerdizar" o "espiritismo" brasileiro, mas, no caso do livro Lula e a Espiritualidade, há um problema ainda maior: submeter o esquerdismo à religiosidade e, talvez, esperar que Deus reorganize o caos no solo brasileiro e prometa a "nação mais fraterna do mundo" para os dias vindouros.
Só não se cruzam os braços porque as mãos estão ocupadas em posição de oração. Mas o livro tenta transformar Lula num "líder messiânico", o que já valeu tantas e tantas chacotas da direita brasileira, da moderada à fascista. E as esquerdas parece que privatizaram a bondade, transformando-a em um subproduto supostamente patenteado por Jesus de Nazaré, que certamente não iria gostar dessa ideia.
No sentido semiológico, preocupa a simbologia da capa do livro. Lula aparece com um olhar triste, a iluminação crepuscular se escurece. Em alguns ângulos, a capa do livro fica ainda mais escura, o que dá a ideia de Lula desaparecendo nas trevas. Com essa simbologia, a imagem sugere que Lula está no seu ocaso político e, talvez, vital, que sua figura desaparecerá nas trevas vividas hoje e a "espiritualidade" do livro seria eufemismo para a extrema-unção do petista. Os reaças iriam adorar.
Não fosse suficiente tal simbologia, Lula aparece, numa das fotos do interior do livro, usando um estranho paletó que lembra o de um sacerdote, além de estar também usando um crucifixo. Lula é um líder político ou um missionário religioso?
O que muitos se esquecem é que a fé religiosa entra em conflito com o pensamento esquerdista. A fé religiosa envolve submissão a alguém considerado superior, a renúncia de benefícios, a aceitação do infortúnio, a espera passiva por um socorro alheio (no caso, o de Deus e seu, em tese, representante, um Jesus estereotipado a partir do Catolicismo).
Compare isso com o esquerdismo, que apela para os protestos por melhores condições de vida, a reação contra os abusos do patronato (a "entidade superior" do mundo do trabalho), a revolta contra as injustiças, a expressão constante do senso crítico. Tudo isso esbarra no repertório de resignação e obediência recomendados pela tradição da fé religiosa.
O que temos que nos preparar, com o livro organizado por Mauro Lopes (apresentador do programa Paz e Bem, do canal TV 247), é que essa acomodação pela religiosidade faz com que as esquerdas se sintam mais resignadas com o governo Jair Bolsonaro do que o próprio núcleo de sustentação original do presidente.
Ver que a maior oposição a Jair Bolsonaro vem de gente de direita, como Gustavo Bebbiano, Alexandre Frota, Joice Hasselmann, o presidente do PSL, Luciano Bivar, ou da golpista Rede Globo de Televisão, isso é bastante irônico, diante das forças progressistas que não moveram um passinho para as ruas para fazer protestos em massa.
Depois daquela gafe do "baile funk de Copacabana", no qual se descobriu, depois, que o dono da Furacão 2000, Rômulo Costa, nada tinha de esquerdista e era aliado de deputados federais que derrubaram a presidenta Dilma Rousseff, as esquerdas agora usam a zona de conforto da fé religiosa achando que isso vai trazer algum milagre.
A decisão do Supremo Tribunal Federal de soltar Lula e o aparente fracasso do leilão do pré-sal, há poucos dias, não foi obra da religiosidade e muito menos do espírito de Chico Xavier. A primeira iniciativa se deve por um conjunto de circunstâncias - como a animosidade entre o STF e a Operação Lava Jato - e a segunda iniciativa uma estratégia das multinacionais do petróleo não adquirirem as reservas de petróleo (não só o pré-sal, mas reservas de outras naturezas) em época turbulenta, para evitar revelar a sua associação ao golpe político de 2016.
E como Lula ficará ocupado com sua religiosidade, o que podemos inferir é que, no Brasil que endeusa tanto Chico Xavier, um discípulo deste, como Luciano Huck, tenha mais chances de ser eleito presidente do Brasil ou, se não for o caso, de indicar o candidato do apresentador de TV para tamanha função. E aí será testado o espírito de tolerância dos "religiosos de esquerda", com toda a sua misericórdia diante de um direitista moderado a conquistar o Palácio do Planalto.
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