Está difícil de se apegar de certas coisas. No Brasil, existe uma coisa maluca, que são as pessoas se desapegando de coisas e pessoas essenciais, como se estivessem cometendo um ato de coragem e força de espírito, mas são as mesmas pessoas que se apavoram e arrancam os cabelos que muitas delas já nem tem mais, quando têm que se desapegar de coisas e pessoas supérfluas ou sem serventia.
Perdemos um sem-número de personalidades das mais importantes e fundamentais para o progresso científico, artístico-cultural, intelectual e moral do nosso país. As pessoas se resignam de maneira surpreendente, mesmo quando se sabe que várias dessas personalidades morreram muito cedo.
Mas quando se fala que certos feminicidas ricos estão perto da morte, uns na casa dos 80 mas doentes há pelo menos uns 30 anos, uns com menos de 50 anos, essas mesmas pessoas se descabelam e se sentem ofendidas.
Podem eles terem fumado feito loucos e consumido cocaína em quantidades industriais no passado, brincarem de Mil Milhas de Indianápolis na Rodovia Régis Bittencourt ou viajarem de jatinho sofrendo pane em pleno ar, a sociedade se sente ofendida só por um aviso amigo de que esses assassinos também um dia se encontrarão com a morte. Preferem que eles vivam como múmias aos 95, 100 anos de idade a pretexto de "ressocializarem" e "recuperarem sua honra".
É um apego doentio. E, no Brasil, há o apego doentio ao que não serve mais ou ao que não se tem necessidade, para compensar o "corajoso" desapego ao que é mais essencial. Muitas pessoas preferem ver assassinos ricos "mofando" até os 93 anos na impunidade, não se sabe por quê, tentando em vão promover uma "boa imagem" de seus nomes e atributos materiais, já falidos e destruídos pelo crime que cometeram.
No simples processo de ir e vir nas cidades, há o sacrilégio vivido por muitos cidadãos de ter que diferenciar um ônibus do outro, porque diferentes empresas operadoras têm uma mesma pintura. A chamada pintura padronizada nos ônibus cujos fanáticos adeptos, os intolerantes "padronizetes", chegam a fazer cyberbullying para forçar o apoio aos tais "ônibus iguaizinhos".
Claro, a lógica é a mesma da ditadura militar, daquela visão moralista que supõe que, botando uma só farda nas empresas de ônibus, o transporte público melhoraria. É a mesma visão militaresca de muitos internatos, a "disciplina pela farda", e não é surpresa que os adeptos são busólogos fascistas que se assumiram futuros eleitores de Jair Bolsonaro (não seria Jair Bus-sonaro?).
Há um apego doentio pelos ônibus padronizados que as autoridades de várias capitais do país já estão trocando a "embalagem padronizada" por outra. Em muitos casos, é um fanatismo que beira à beatitude religiosa nos aspectos mais doentios. Daí que os fanáticos pela pintura padronizada (ou PP, como se diz por aí) são também conhecidos como "beatos de carimbo de prefeitura". A padronização continua, mas o design está sendo trocado como quem troca de roupa.
Pequenas regras também estão sendo alteradas, enquanto o jogo permanece o mesmo. Se um sistema adota a cor vermelha para articulados, esses passam a ter a cor azul. Se a regra de concessão inclui contrato de cinco anos, ele passa a ser por três. Se a licitação exige prazo de orçamento de dois meses, passa a ser para seis. Se existe consórcio Interbairros, ele se divide em Interbairros Sul e Interbairros Norte, ou então ele é extinto e absorvido ao consórcio Troncal etc etc etc.
É como se trocasse o seis por meia-dúzia e ainda estabelecer mudanças na caligrafia: se o seis tem que ter uma curvinha na ponta, ou se ele é serifado, ou se ele tem que se grafado em itálico ou negrito, e por aí vai. São pequenas mudanças para manter tudo como está e maquiar a mesmice sob o aparato da falsa novidade.
A prática cotidiana mostra que pintura padronizada nos ônibus, ou seja, colocar diferentes empresas de ônibus para exibir a mesma pintura, não traz vantagem alguma para a população. Nenhuma mesmo. Não garante transparência, confunde os cidadãos que já precisam estar atentos para seus compromissos, muita gente tem dezenas de contas a pagar por mês e ainda tem que diferir a empresa A da empresa B para não embarcar no ônibus errado e perder tempo à toa.
O problema é que a obsessão das autoridades e da meia-dúzia de busólogos fascistinhas - fascistas de chupeta, que criam blogs caluniosos contra quem discorda deles, mas que só são vistos pelos delegados de polícia (que já tem os IPs desses fascistas na mão e já sabem até onde estes moram) - pelos ônibus padronizados só serve para alimentar vaidades pessoais, que não podem estar acima do interesse público.
O transporte público se rebaixa a um triste espetáculo do colarinho branco, transformando exposições de ônibus em meros acontecimentos políticos, talvez com efeitos de campanhas eleitorais, nos quais os ônibus padronizados ostentam os logotipos de prefeituras ou governos estaduais, enquanto deixam o nome da empresa pequenininho, ou, na melhor das hipóteses, a um modesto logotipo que se perde quando o ônibus é visto de longe.
Há muita falácia, feita no mais puro sotaque juridiquês, do qual o político ou tecnocrata defensor dos ônibus padronizados cria uma força-tarefa de desculpas esfarrapadas para justificar a prevalência da medida e a indisposição das autoridades em liberar a cada empresa de ônibus o direito (e o dever, porque favorece a transparência) de exibir a sua própria identidade visual.
Esses "técnicos" e "autoridades" criam tantas desculpas no mais complicado juridiquês, só para defender a pintura padronizada nos ônibus como "medida necessária para a mobilidade urbana" (?!), amontoando explicações tão escalafobéticas que nem eles mesmos entendem o que eles realmente querem dizer.
Chegam mesmo a mentir, dizendo que a pintura padronizada "facilita a identificação" e "organiza o transporte público", e chegam também a se aproveitar da ignorância da população para forçar a aceitação dos "ônibus iguaizinhos" em troca de renovação de frota com veículos refrigerados de chassis de marcas suecas.
Aliás, isso é uma grave infração legal, prevista no artigo 39, inciso IV, do Código de Defesa do Consumidor. Imagine forçar a aceitação da pintura padronizada nos ônibus, em troca da aquisição de ônibus refrigerados com chassis mais potente e alguma configuração mais especial.
O Rio de Janeiro mostrou a decadência dos ônibus padronizados. Criou um modismo que exportou não só a pintura padronizada mas o sucateamento do transporte coletivo em cidades como Florianópolis e Recife, além de "requentar" sistemas há mais tempo decadentes como São Paulo, Brasília, Fortaleza, São Luís, Manaus, Belém, Porto Alegre e Belo Horizonte, nos quais se trocou ou se alterou levemente as "embalagens" da pintura padronizada.
O sistema de ônibus municipais cariocas, no qual até os ônibus executivos têm invariavelmente uma pintura que confunde a todos - o risco de alguém pegar um ônibus para um lugar e ir a outro é altíssimo, e ainda mais sob a ameaça de esbarrar no cano do fuzil de um traficante - , mostrou a tragédia dos "ônibus iguaizinhos", que aumentam a corrupção, degradam o serviço (sem identidade própria para mostrar, as empresas se desleixam e passam a servir mal, até porque o vínculo de imagem é da Prefeitura) e confundem os passageiros.
Apesar disso, não há previsão de quando esse pesadelo dos "ônibus iguaizinhos" vai terminar. Pelo contrário, algumas cidades já mudaram a embalagem, o que significa um lamentável prolongamento desse pesadelo. Enquanto isso, as pessoas que precisam ir para os estudos, o trabalho ou aos bancos pagar suas contas, não bastassem a atenção sobrecarregada em suas atividades pessoais, terão por um bom tempo que redobrar as atenções para não embarcar no ônibus errado. Lamentável.
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