A armadilha parece imperceptível, porque no cotidiano solteiras de todos os tipos tocam sua vida em frente. Mas o que se observa na grande mídia é uma campanha depreciativa e humilhante para as solteiras, vistas como "vagabundas", "erotizadas" e "narcisistas".
O estereótipo da mulher solteira na mídia comercial, que reflete na adesão de muitas incautas nas redes sociais, é dos piores: ouve música ruim, só exibe o corpo, só quer saber de noitadas, é obcecada por tatuagens e adota um comportamento arrogante e exibicionista que beira à egolatria.
Sabemos que não é uma visão real e nem correta. Nela escondem preconceitos sociais cruéis. Mas o poder de penetração da mídia comercial, que voltou a aumentar sua audiência pelo grande público, influi para que a brasileira média seja induzida a perseguir esse estereótipo de uma maneira ou de outra.
A banalização da sensualidade feminina, que ganha desculpas como a "liberdade do corpo" e o "direito ao sexo", segue dois caminhos: se a mulher é considerada "em forma", ela abusa da sensualidade. Se ela é considerada "fora de forma", ela se mantém na aparência física usando o "combate à ditadura da beleza e da forma" para manter uma gula que pode lhe trazer câncer de mama ou infarto em pouco tempo.
A "solteira" midiática é uma figura caricata. É uma mulher manipulada pela mídia e pelo "sistema", mas que sempre é induzida a pensar que é "livre", "independente" e "com a consciência do seu próprio corpo" e "dona do seu próprio nariz". É consumista e erotizada, arrogante e convencida, hedonista ao extremo mas sem responsabilidades de romper com seus paradigmas de vida consumista e alienada.
O gosto musical se volta ao pior da música brasileira: "sertanejo", "funk" e "pagode romântico". Na literatura, ênfase nos livros de auto-ajuda. Em certos casos fanatismo religioso e um desmedido fanatismo pelo futebol. Apreciação de bobagens que as faz entrar em comunidades como "Eu Fiz Besteira na Vida. Quem Nunca?" ou "Eu Já Chupei Dedo Quando Crescida" também são típicas.
Há "garotas-propaganda" para essa "solteirice" pejorativa que a mídia comercial, através de programas ou portais de Internet "populares", serve para as mulheres. No mais grotesco dos casos, há a funkeira Renata Frisson, a Mulher Melão, cujo único papel que desempenha na vida é o de mulher-objeto. No mais contido dos casos, tem-se a ex-BBB Ana Paula Renault, que vende uma imagem de "solteirice" associada à curtição obsessiva da vida, como fama, noitadas e visibilidade.
A imagem da solteira trabalhada pela mídia brasileira, com suas mulheres-frutas, ex-BBBs, cantoras de "forró eletrônico", "musas fitness", "gatas do Brasileirão", "ring girls do UFC" e outras aberrações mostra o extremo oposto da imagem da solteira em países desenvolvidos, como França, Bélgica, Suíça, Suécia e Noruega.
Nesses países, a solteira está associada a uma mulher que combina inteligência aguçada e prazer na vida. É uma mulher que só se sensualiza quando é necessário e quando o contexto permite, sem transformar o corpo numa mercadoria.
A solteira do Primeiro Mundo é capaz de dar entrevistas sensatas sobre vários assuntos, possui um gosto musical sempre decente e nunca convencional - ela escapa dos listões de "paradas de sucesso" radiofônicas e digitais (como as "mais-mais" do Youtube) - e é discreta e comedida. E não se sente obrigada a ter o corpo tatuado: quando muito, apenas tatuagens discretas ou artísticas.
Só que o perfil de solteira que vigora nos países europeus chega ao Brasil como paradigma de mulher que tem que estar casada, se mantendo vinculada a um marido que é geralmente um empresário ou um advogado, cerca de cinco anos mais velho e dotado de uma personalidade insossa e "discreta", geralmente um homem sisudo que não tem que tirar satisfações com a sociedade, nem mesmo nas horas de lazer ao lado da esposa.
Isso é o machismo condicionado com os avanços do feminismo, como se o mundo machista tivesse que negociar com a mulher emancipada. A mulher que busca uma independência plena e foge de paradigmas de coisificação e erotização obsessiva tem que estar vinculada a um marido, como se a mulher que fugisse de padrões machistas tivesse que ser domada por um macho.
Em contrapartida, a mulher que segue padrões machistas, como a coitada submissa que só ouve o caricato "pagode romântico" e brinca com o pequeno afilhado, como se fosse mais criança do que ele, ou a "boazuda" que só cuida do corpo e possui uma forma "turbinada" e "esculpida", cheia de tatuagens, silicones e, em certos casos, botox e plásticas outras feitas sem necessidade, o "sistema" dispensa a mulheres assim o vínculo com algum namorado ou marido.
É o reflexo de uma sociedade ultraconservadora que retomou o poder nos últimos anos. Um machismo que nunca quis perder o poder e negocia com a mulher os freios a serem feitos pela emancipação sócio-econômica. A mulher que foge de padrões ideológicos machistas têm que estar vinculada a um marido poderoso. Já a mulher que segue o machismo "por conta própria" pode ficar solteira à vontade porque ela não precisa de macho. Já obedece o machismo de forma "exemplar".
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