Criptógamos Carnudos. Belo nome para banda de rock. Mas foi uma definição dada por Jean-Baptiste Roustaing para a reencarnação, em forma de vermes ou plantas, de espíritos considerados faltosos com a missão da encarnação humana.
Este é um dos pontos polêmicos do livro Os Quatro Evangelhos que Roustaing lançou em 1866, em contraposição ao pensamento de Allan Kardec e tido como psicografado por Emile Collignon, trazendo mensagens atribuídas aos quatro evangelistas (João, Lucas, Marcos e Mateus) e outros personagens bíblicos.
Todos que entendem de Doutrina Espírita com alguma profundidade conhecem a história. Roustaing lançou um livro "espírita" que veio com velhos dogmas religiosos, inclusive a tese do Docetismo (movimento religioso que existiu na Idade Média) de que Jesus de Nazaré não era encarnado, era somente um "fantasminha" que esteve entre nós na forma de um espectro fluídico.
O livro causou escândalo, Allan Kardec foi educado ao reconhecer qualidades e defeitos do livro, mas Roustaing ficou irritado ao saber, entre outras coisas, que o pedagogo sugeriu que o livro tivesse apenas um único volume, já que os três (quatro, na edição brasileira) tinham um conteúdo difícil de ser compreendido e chato de ser lido.
A obra causou polêmica na França, dividiu e enfraqueceu a doutrina de Kardec, e, ainda que o pensamento kardeciano tivesse sido fortemente abalado e caído no esquecimento pelos franceses, Roustaing também foi desqualificado por ter criado escândalos demais.
Aí o roustanguismo veio ao Brasil, influenciou o "movimento espírita" nascente, foi base para a fundação da Federação "Espírita" Brasileira e ainda ganhou uma adaptação com sabor bem brasileiro, através das obras do católico Francisco Cândido Xavier, o popular Chico Xavier.
Claro, num Brasil em que é fácil as pessoas dizerem uma coisa, fazerem outra e saírem ilesas de qualquer enrascada, o roustanguismo com o tempo tornou-se mais sutil pois aqui o advogado francês também causou escândalo e Roustaing passou a ser apenas apreciado pela alta cúpula da FEB, enquanto outros faziam roustanguismo enrustido usando o nome de Kardec.
E o que o roustanguismo tem a ver com o rock, já que acima foi feito o comentário sobre os Criptógamos Carnudos como nome típico de banda de rock? Muita coisa, afinal a cultura rock passou por um outro processo de deturpação comparável ao da Doutrina Espírita.
Pois as emissoras de rádio que se dedicam ao rock, intituladas por isso mesmo rádios de rock, também tiveram seu primeiro momento de integridade, coerência, criatividade e respeito e amor à causa, como teve Kardec com a Doutrina Espírita.
Em Niterói, a Rádio Fluminense FM foi desenvolvida dentro de uma personalidade sóbria, um repertório abrangente e uma atitude coerente e respeitosa aos valores culturais e à inteligência do público, através de Luiz Antônio Mello e outros radialistas.
Os locutores tinham voz sóbria, não falavam em cima das músicas nem diziam gírias, os produtores garimpavam músicas exclusivas e fora da mesmice do hit-parade e a qualidade musical tinha a maior prioridade possível.
Aí, com o passar do tempo, veio uma rádio paulista chamada 89 FM que caiu de pára-quedas no perfil rock, que até começou como emissora mediana de rock autêntico, mas isso durou pouco e a emissora criou seu Rockstanguismo, criando uma espécie de roustanguismo radialista e roqueiro.
E o que vieram? Locutores com vozes afetadas, como se dirigissem para crianças pequenas, e que falavam em cima das músicas, que por sua vez se limitavam aos hits - seleção parcial de músicas que são recorde de execuções em rádio - e, não raro, por bandas de qualidade duvidosa que faziam arremedos de rock.
Com o tempo, a programação se amarrou ainda mais aos "grandes sucessos", vieram programas de piadas, enquanto programas dedicados a variantes do rock como progressivo, som skatista e outros desapareciam em prol da superficialidade das rádios comerciais "de rock".
Essas autoproclamadas "rádios rock" eram na verdade emissoras pop das mais debiloides, só que com todo o aparato "roqueiro" feito para boi dormir e anunciantes faturarem horrores com essa publicidade enganosa.
E aí passa o tempo e uma rádio que sempre foi pop, como a Rádio Cidade, do Rio de Janeiro - que em 1977 ignorou sabiamente o punk rock e o metal que corriam lá fora (nem todo mundo pode compreender tais gêneros, né?) transformou o rádio FM fazendo um perfil pop que era sua habilidade - , se encanou que queria ser "rádio rock" na marra e aproveitou o fim da Fluminense para isso.
Como um Roustaing das rádios de rock, a Rádio Cidade colocava ninharia nas mentes dos roqueiros: ler livros era horrível, o jovem só podia jogar RPG e assistir a filmes de aventura e ação e o rock só devia ser curtido através dos sucessos das paradas e com a mesmice do "barulho puro", com guitarras distorcidas e vocais agressivos ou desleixados que dissimulavam a baixa qualidade musical.
Claro, se Roustaing apelava para Jesus Cristo, seus apóstolos e outros profestas bíblicos, alguns do Velho Testamento, a Rádio Cidade, como a 89 pouco antes, apelava para alguns roqueiros veteranos, como o "velho testamento" do metal e o "novo testamento" do punk, para seu roustanguismo radiofônico e roqueiro.
E hoje, tempos em que os roustanguistas enrustidos alegam "rigorosa fidelidade a Allan Kardec" para professar seu confuso "espiritismo" igrejista, muito mal travestido de ciência e filosofia, a Rádio Cidade mudou seu logotipo e agora fala em "defesa" do tal "rock de verdade".
Da mesma forma que os "espíritas" rompem com o pensamento original de Kardec, apesar de tantos juramentos de "rigorosa fidelidade", a Rádio Cidade fala em "rock de verdade", em estar "cada vez mais rock'n'roll" rasgando as lições da Fluminense FM ou só as aproveitando quando as conveniências permitem.
Com a Rádio Cidade, o roqueiro acabou ganhando imagem de débil-mental e a cultura rock se transformou numa Disneylândia de jovens pulando, botando língua pra fora e fazendo o sinal do diabo com os dedos das mãos. No lugar do jovem conscientizado e ativista da Fluminense, veio o jovem alienado e resignado com tudo da Rádio Cidade.
Talvez surja alguma bandinha alucinada chamada Criptógamos Carnudos prometendo a salvação do rock às custas de muita risada e muito barulho por nada. E o "rock de verdade" da Rádio Cidade é tão mentiroso, postiço e superficial quanto o "espiritismo autêntico" prometido pelos roustanguistas não-assumidos que se escondem sob o endeusamento a Chico Xavier e Divaldo Franco.
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