Num desses aspectos surreais existentes no Brasil, diferentes personagens que estiveram em evidência no período entre 1990 e 1992 e que estavam comprometidos, cada um à sua maneira, com a degradação social, cultural e econômica dos brasileiros, tentam a todo custo uma reabilitação como se tivessem sido personalidades de grande valor para nosso país.
Os "espíritas" prometem tanto o "novo Eldorado" para o Brasil que, a partir do exemplo "iluminado" de Francisco Cândido Xavier, a expectativa é que o país se torne o tão prometido "coração do mundo e pátria do Evangelho" que o anti-médium mineiro tanto pregou durante décadas.
Aliás, é estranho, mas acontece. Um articulado e quase silencioso esforço de elites empresariais, jornalísticas, publicitárias e acadêmicas quer transformar a década de 1990, que muitos consideram a "década perdida" do Brasil, em uma espécie de "década dourada", atribuindo seus personagens uma genialidade que na verdade nunca existiu nem existe.
Não estamos aqui mostrando aversões pessoais a esses indivíduos, mas apenas dizendo que eles estão longe de representar qualquer genialidade, não bastasse estarem eles associados aos processos de mediocrização e degradação de ordem política, cultural, econômica etc. Eles de certa forma colaboraram para esse processo.
Será que esses personagens ajudarão a construir o tal "coração do mundo"? Afinal, o "espiritismo" não valoriza muito a qualidade de vida, a vida material é vista como algo "qualquer nota", e é curioso que uma doutrina tão "espiritualista" impede, de forma mais materialista possível, que se aproveite a vida material para realizar verdadeiras transformações culturais.
A impressão que se tem é que o "espiritismo" segue o zeitgeist brasileiro dos últimos 50 anos, em que todo um sistema de retrocessos foi trazido a partir do golpe militar de 1964 e que culmina com o que se vê por aí no Brasil. A década de 90 intensificou essa derrocada.
Vamos comparar os personagens dessa década, e o que eles representaram nos anos 90 e o que a campanha de reabilitação do período 1990-1992 quer fazer deles, não apenas como pessoas em evidência (que seria até direito deles de se manterem), mas como se fossem personalidades "indispensáveis" para nossa cultura.
O primeiro nome, Fernando Collor, havia sido apoiado por Chico Xavier durante a campanha eleitoral de 1989. O apoio não culminava a uma profunda amizade, mas parece que Emmanuel, o mentor de Chico, foi com a cara de Collor, porque ele sofreu apenas pequenos infortúnios políticos e até hoje tenta passar por cima dos escândalos que tem que enfrentar.
Vamos à lista:
FERNANDO COLLOR
O QUE ELE FOI: Presidente da República com ideias neoliberais, conservadoras e populistas, que confiscou a poupança dos brasileiros para atender ao esquema financeiro do seu tesoureiro de campanha eleitoral, Paulo César Farias, misteriosamente falecido. Adotava medidas contra as classes trabalhadoras e ameaçou privatizar as universidades públicas.
O QUE QUEREM QUE ELE SEJA: Um grande líder popular, orador habilidoso, político progressista e dotado de um populismo ainda mais festivo e uma atualização do mito de "caçador de marajás" que garantiu sua vitória eleitoral em 1989.
CHITÃOZINHO & XORORÓ
O QUE ELES FORAM: Primeira dupla a deturpar a música caipira aos conceitos abertamente comerciais. Misturando country music, guarânias, mariachis, boleros e influências trazidas por Waldick Soriano e Amado Batista, a dupla paranaense inaugurou toda uma linhagem do comercialismo "sertanejo" que ultimamente é representada pelos ditos "universitários".
O QUE QUEREM QUE ELES SEJAM: Ícones sofisticados da MPB e da música caipira de raiz, com coragem de gravar um disco inteiro em tributo a Antônio Carlos Jobim, sobretudo gravando os clássicos bossanovistas do músico carioca, vertidos para clichês comerciais da música caipira.
ALEXANDRE PIRES E BELO
O QUE ELES FORAM: Ex-vocalistas, respectivamente, do Só Pra Contrariar e Soweto, Alexandre Pires e Belo fizeram parte do cenário do "pagode romântico", espécie de variação da música brega que soa como um arremedo de samba. Saindo de seus grupos, seguiram trabalhos solo sempre se mantendo em evidência na canastrice musical digna de calouros de reality shows musicais.
O QUE QUEREM QUE ELES SEJAM: Grandes gênios da MPB, com um pé no soul brasileiro, tentando fazer o Belo um arremedo de Cassiano e Alexandre Pires um arremedo de Wilson Simonal, por mais que este tenha mais a ver, musicalmente, com um misto de Luís Miguel com Bobby Brown.
RAÇA NEGRA
O QUE ELES FORAM: Outro grupo de "pagode romântico", com ênfase nas influências mofadas de Odair José e Amado Batista, o som do grupo Raça Negra é tão mofado que os discos gravados entre o final dos anos 80 e o começo dos anos 90 parecem terem sido produzidos 20 anos antes. Musicalmente medíocre, vocalista ruim, músicas de cafonice irreparável.
O QUE QUEREM QUE ELES SEJAM: Grupo da vanguarda cultural, independente e alternativa, comprometido com a (suposta) renovação do samba-rock, representante de uma "nova cultura pós-tropicalista".
MICHAEL SULLIVAN
O QUE ELE FOI: Ex-integrante dos Fevers, grupo da Jovem Guarda, ele se chamava Ivanilton. Quando embarcou no modismo de cantores brasileiros fazerem imitação de música norte-americana, nos anos 70, virou Michael Sullivan. Nos anos 80, foi parceiro de Paulo Massadas, na composição, e do seu ex-colega de Fevers, Miguel Plopschi, no comando da produção. O comercialismo musical escancarado era imposto para destruir a MPB, subordinada à americanização e às regras de mercado. Seu objetivo é substituir a MPB autêntica pelo comercialismo ianque adaptado ao Brasil.
O QUE QUEREM QUE ELE SEJA: O maior gênio vivo da mesma MPB que quis destruir, tratado como se fosse uma versão pós-moderna de Tom Jobim, e convertido no "grande amigo" dos mais diversos emepebistas.
MÁRIO KERTÈSZ
O QUE ELE FOI: "Filhote" da ditadura militar, engenheiro ultraconservador e que, como prefeito de Salvador, capital da Bahia, realizou um aberrante esquema de corrupção no qual deixou obras de grande estrutura urbana paralizadas, já que desviou uma grande soma de dinheiro público para as empresas "fantasmas" criadas por ele e um aliado, que alimentavam suas fortunas pessoais. Da parte de Kertèsz, o dinheiro foi usado para comprar ações de emissoras de rádio e TV locais, sem falar que ele havia também colaborado para a decadência do Jornal da Bahia, do qual foi nomeado interventor.
O QUE QUEREM QUE ELE SEJA: Intelectual baiano, radiojornalista corajoso, amigo da sociedade baiana e encampador das causas sociais, imparcial acolhedor da diversidade social do país e do mundo e (para os "espíritas") patrão do "divertido" e "admirável médium" José Medrado.
SOLANGE GOMES
O QUE ELA FOI: Uma das musas da Banheira do Gugu, sub-celebridade que viveu um tumultuado casamento com um cantor de "pagode romântico". Ícone da vulgarização do corpo feminino, no qual a sensualidade se reduz a uma mera mercadoria grotesca e por demais apelativa.
O QUE QUEREM QUE ELA SEJA: Ícone do corajoso feminismo sensual, mulher que não tem medo de se "sensualizar" depois dos 40 anos e que reivindica a "liberdade do corpo" como ideal de vida.
DJ MARLBORO, MC JÚNIOR & MC LEONARDO E DERIVADOS
O QUE ELES FORAM: Depois que DJ Marlboro deturpou o tecnofunk para um formato comercial mais escancarado, O que seria uma adaptação dos bons sons do funk eletrônico e de variações como o freestyle dos EUA, tornou-se um irritante arremedo de cantigas-de-roda "cantados" por jovens sem talento vocal algum, daí as duplas de MC's que se seguiram.
O QUE QUEREM QUE ELES SEJAM: DJ Marlboro vende a imagem de "artista de vanguarda", protegido pela blindagem de intelectuais "provocativos", a empurrá-lo para eventos associados à cultura alternativa. Já os MC's foram convertidos em "música de protesto", embora suas letras sejam de um conteúdo claramente inócuo.
GUILHERME DE PÁDUA
O QUE ELE FOI: Ator medíocre e aspirante a galã, ele havia assassinado, juntamente com a então esposa Paula Thomaz, a colega de elenco Daniella Perez, filha da dramaturga Glória Perez e então esposa do ator Raul Gazolla. Condenado à prisão e depois entregue à liberdade condicional, Guilherme passou a agir com arrogância, exigindo tratamento diferenciado da imprensa e ameaçando processar até a mãe da vítima, só porque ela lhe chamou de "psicopata".
O QUE QUEREM QUE ELE SEJA: Sem qualquer oportunidade de reaproveitá-lo como ator, setores da grande mídia querem ao menos que ele se transforme em sub-celebridade "polêmica" que sempre dá "declarações bombásticas" em programas de entretenimento.
CONCLUSÃO
Que essas pessoas tenham algum lugar ao "sol" da mídia do entretenimento comercial ou do cenário político-midiático dominante, vá lá, porque já existem interesses diversos que os protegem neste sentido.
Mas o problema é quando eles forem empurrados - e uns já são há um tempo - para representarem um "período glorioso", como o "sistema" quer fazer do período 1990-1992, começo de uma época de perdição e derrocada maciça de valores no Brasil.
Mais grave ainda é quando essa década for usada como modelo de progresso e modernização do país e, na perspectiva "espírita", significar a ascensão do país na comunidade das nações, usando esses "exemplos" para mostrar o que o país teria de "valioso" para ser o "coração do mundo". Se isso ocorrer, estaremos ferrados.
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