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Feminicida rico até se "ressocializou" no século XIX, mas sua morte foi prematura



Sob o pretexto de diversas motivações - desde interesses necropolíticos estratégicos até o oportunismo religioso da tendenciosa "conversão" de pessoas algozes, com o objetivo oculto de recuperar reputações de privilegiados com as "mãos sujas de sangue" - , a imprensa não divulga as mortes de feminicidas, apesar de dados extra-oficiais já apontarem que a expectativa de vida de um feminicida é, hoje, de 61 anos, 80% do que se estima em relação ao brasileiro comum.

Parece que nem de joelhos se dá para pedir que nossa "livre imprensa", que noticia até morte de gandula de futebol de várzea por mal súbito, noticie mortes de feminicidas. Já supomos que, pela combinação de idade avançada e maus tratos à sua saúde, que o famoso feminicida Doca Street já está falecido, há, pelo menos, dois ou três anos, embora oficialmente "continue vivo" até hoje (quando provavelmente seu corpo já foi cremado e sua herança sendo acertada pelos herdeiros da ilustre família aristocrática).

Ângela Diniz não teria sido morta pelo Super-Homem, convenhamos. Um sujeito que, na juventude, consumiu muita cocaína - o crime teria sido cometido após a inalação da droga - , fumou demais até na velhice (como na última entrevista de Doca à imprensa, em 2006), se embriagou no auge de sua vida, doou um rim que se mostrava doente e ainda viveu seus dias na poluída São Paulo. Como é que Doca iria ter forças, físicas e psicológicas, para ser influencer aos 81 anos? Menos doente, o roqueiro Little Richard, nessa mesma idade, se aposentou e mal sabia andar.

Num tempo em que a imprensa noticiava, sem problemas, mortes de feminicidas, sem esse papo de "evitar histerias" (enquanto se noticia, sem problemas, doentes mentais que assassinam crianças, provocando histerias ainda maiores), tivemos vários registros de feminicidas históricos já falecidos. Vejamos:

- O jovem Cássio, riquinho que empurrou Aída Curi para a morte, em 1958 e foi um dos dois envolvidos nesse crime que marcou história, foi assassinado, já foragido da prisão, vinte anos depois;

- Michel Frank, assassino de Cláudia Lessin, foi assassinado em 1986;

- Eduardo Gallo, pai de Maitê Proença que assassinou a mãe da atriz, Margot Proença, estava com câncer e se suicidou;

- Otto Willy Jordan, que matou a esposa no final dos anos 1980, morreu num acidente aéreo em 1994;

- Leopoldo Heitor, que assassinou a amante Dana de Teffé, em 1961, morreu doente aos 79 anos em 2001;

- Farah Jorge Farah, que estrangulou a amante até a morte, em 2003, se matou em 2017.

Neste contexto, temos também Antônio Pimenta Neves, a poucos meses de "comemorar" 20 anos do assassinato de Sandra Gomide, está diabético, com câncer na próstata em estágio avançado, falência múltipla dos órgãos, hipertensão fortíssima e problemas cardíacos sérios - e isso se ele não se expuser à Covid-19 - , como o próximo a ir para o túmulo, talvez sem viver para os tais 20 anos do seu crime, embora a imprensa possa reagir em silêncio absoluto, apesar de Pimenta ter sido um jornalista.

Outros dois feminicidas octogenários, o empreiteiro Roberto Lobato, que matou a esposa em 1970 e sua aparição mais recente foi uma cerimônia com empresários da construção pesada em 2015, e o cantor Lindomar Castilho (que já declarou encerrada sua carreira), também já começaram sua caminhada para os caixões ou para as urnas de cremação. Não seriam os dois, tal como Doca e Pimenta, "garotões bem nutridos" aos 80 e tantos anos. Um dia morrerão de causas naturais.

É natural, para muitos, que um Moraes Moreira, alegre e positivo, morra de infarto aos 73 anos, provavelmente o mesmo óbito que o roqueiro André Matos teve, com apenas 47 anos. Mas se falarmos que Lindomar Castilho está no fim de vida, essas pessoas se revoltam, porque acham que a "ressocialização" dos feminicidas requer mais tempo, e que se danem as Leis da Natureza (para todo efeito, Doca Street é "um dos mais novos influencers dos últimos tempos" e não se fala mais nisso).

No passado, tivemos o caso do empreiteiro Tubal Vilela, da região de Uberlândia - o mesmo Triângulo Mineiro da Uberaba de Chico Xavier - , figura prestigiada da alta sociedade local e poderoso empreiteiro (assim como Roberto Lobato, de Belo Horizonte), que não viveu longamente, tendo falecido de leucemia aos 61 anos, em 1962. Em 1926, ele matou sua primeira esposa, Rosalina Buccironi, desconfiado de uma imaginária traição, tendo sido absolvido por alegação de "legítima defesa de honra".

Tubal se ressocializou a ponto de se tornar uma das personalidades empresariais mais prestigiadas do Triângulo Mineiro. Seu crime caiu no esquecimento, como se fosse um fato sem importância. Ele recebeu homenagens até em uma praça que recebeu seu nome e, no final da vida, era filiado ao mesmo PSD de Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Ernâni do Amaral Peixoto e Ulisses Guimarães.

Ressocialização de criminosos não é coisa reprovável. É saudável e merece respeito absoluto. Mas no caso dos feminicidas, há abusos na suposta ressocialização, pois eles sempre se "ressocializaram demais", não para se arrepender, realmente, dos seus erros, mas para recuperar privilégios e usar o esquecimento do crime para anestesiar seu orgulho e sua presunção.

No caso de ressocialização de criminosos, ela é, em maior parte, louvável para pessoas que cometeram assaltos, tráfico de drogas e casos de homicídio culposo, como disparo acidental de armas e certos casos de acidente de trânsito.

Mas é complicado um feminicida, que mata com a consciência plena deste ato, se ressocializar. Casos como este são muitíssimo raros, embora fossem eles que tragam a euforia da "misericórdia de resultados" dos moralistas de plantão, mais "misericordiosos" com a boa aparência, o jeito viril e a boa posição social do assassino a ser "reintegrado na sociedade".

Além disso não trazer, na maioria da vezes, um melhor aprendizado - não há como comparar o ladrão que rouba para comprar comida  com o rapagão rico que mata a mulher sem escrúpulos e só porque ela lhe pediu divórcio - , o feminicida mantém seu orgulho, preservado ocultamente pelo sangue que ele fez derramar de sua vítima.

Casos como os de Marcelo Bauer, filho de um militar, que matou a namorada com 30 facadas em 1987, e John Sweeney, estadunidense que matou, em 1980, a namorada Dominique Dunne, atriz de Poltergeist, mostram até uma situação patética dos feminicidas que "mudam de vida" dentro da mesma encarnação, sem progredir muito no orgulho pessoal e nos privilégios.

Bauer fugiu para a Dinamarca e depois Alemanha, onde mudou de nome. Sweeney alterou seu nome para John Patrick Maura. Aparentemente, os dois continuam vivos (há, no Brasil, um pedido de extradição de Bauer, até agora não cumprido), mas talvez, se eles morressem, poderiam, em vez de "reencarnar" na própria encarnação, iniciar uma reencarnação do zero, sob condições sociais novas, tendo um recomeço sem as "marcas de sangue" da encarnação em que cometeram seus crimes, já beneficiados pela impunidade.

No século XIX, houve um caso de feminicídio na alta sociedade baiana que inspirou, inclusive, uma novela "espírita", Espelho da Vida, da Rede Globo de Televisão. Note-se que dramas criminais são muito apreciados por "espíritas" para obras de moralismo conservador que expressam os valores punitivistas que o "movimento espírita" acredita no destino das vítimas de infortúnios e tragédias, dentro da mesma perspectiva "a vítima é a culpada" que os feminicidas também acreditam.

O crime repercutiu em todo o Brasil e seu autor, João Estanislau da Silva Lisboa, que matou a jovem noiva Júlia Fetal, foi preso, cumpriu a sentença prisional determinada na época e se ressocializou, tendo sido professor, criando até mesmo um Atlas educativo, para alunos de Geografia. João até recusou os benefícios de atenuação da pena, um caso raro entre os feminicidas, e só saiu quando completou o prazo. Caso raro.

No entanto, pela masculinidade tóxica que toma conta dos feminicidas - na qual até uma constante irritação pode afetar o funcionamento cardíaco - , João Estanislau teve vida curta, morrendo de parada cardíaca 31 anos depois de ter matado a noiva. Não chegou a ter 60 anos de idade e fontes variam sua idade final entre 55 e 59 anos.

O crime ocorreu no mesmo sobrado em que morou o poeta romântico Castro Alves, também morto em 1847. É a mesma ironia que fez com que o famoso feminicídio do século XX, o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, ter ocorrido na mesma Armação de Búzios que, apesar de ter sido distrito de Cabo Frio, é vizinha de Barra de São João, distrito de Casimiro de Abreu e onde se encontra o túmulo desse outro poeta romântico do século XIX.

Reproduzimos a matéria do Correio da Bahia, que inclui até mesmo uma suposta visão de um indivíduo, que se disse "médium", de que o "espírito" atribuído a Júlia Fetal apareceu gritando por socorro e ele alega ter falado com ela. Vamos então ao texto:

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Júlia Fetal: o feminicídio na Avenida Sete que inspirou a novela Espelho da Vida

Por João Gabriel Caldea - Correio da Bahia, Salvador, 05 de fevereiro de 2019.

A trama de Espelho da Vida, novela das 18h da TV Globo, se passa numa cidade fictícia do interior mineiro, mas é inspirada numa história real da capital baiana, ocorrida há 172 anos. Júlia Clara Fetal, então com 20 anos e um futuro promissor pela frente, foi atingida com um tiro no peito pelo noivo, o bacharel e professor João Estanislau da Silva Lisboa, 28, num sobrado da futura Avenida Sete, próximo à Praça da Piedade.


Contam que ele usou uma bala de ouro, feita com o anel de noivado derretido, o que inclusive inspirou o título de um livro de Pedro Calmon. A obra ‘A Bala de Ouro: História de um Crime Romântico’ narra de forma meio literária, meio jornalística, a história de amor e tragédia que mexeu com a sociedade baiana – e brasileira, afinal, até o imperador Dom Pedro II se meteu no imbróglio. 

Mas para desenrolar o caso, de maneira mais dinâmica, destacamos 10 pontos (incluindo algumas curiosidades) desse feminicídio que entrou para nossa história e até hoje rende especulações.

1 – Inspiração para a novela
Autora de Espelho da Vida, Elizabeth Jhin confirmou que usou a história da jovem baiana de família tradicional para escrever a trama de Júlia Castelo (vivida por Vitoria Strada), a mocinha assassinada pelo noivo, Danilo Breton (interpretado por Rafael Cardoso).


“Uma amiga museóloga de Salvador me falou sobre o caso de uma jovem, Júlia Fetal, assassinada pelo noivo, na cidade, no século XIX, e me inspirei nela para criar minha Júlia Castelo”, contou Elizabeth Jhin, em setembro, antes da estreia do folhetim.

Uma cena:
Cris/Júlia Castelo - Por que me chama de Júlia? Por que me deu o camafeu e a bala de ouro?
André - Eu tenho que ir...
Cris/Júlia Castelo - Não, espera! Meu nome é Cristina. Eu não sou a Júlia.
André - Você é... Você sabe que é, no fundo do seu coração.


Na ficção, a morte da mocinha foi no meio do mato.

O sobrado, que foi reconstruído com algumas intervenções arquitetônicas, acabou adquirido pela família de Castro Alves em 1852. O poeta morou lá na infância, recém-chegado a Salvador procedente de Muritiba, no Recôncavo, quando tinha 5 aninhos.

No século XX, o prédio foi derrubado e construído outro imóvel onde até outro dia funcionava a farmácia Sant’Ana, na altura da Igreja de São Pedro, na Piedade. A repórter Fernanda Lima contou a história da loja, inclusive citando o morador ilustre.


A Praça Castro Alves, em homenagem ao poeta, foi construída no final da Avenida Sete, mas uma lembrança dele continua ali em frente, no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB): um singelo tufo de cabelo do finado escritor. Aliás, cabelos de Júlia também podem ser encontrados ali pertinho, como relíquia. O pequeno quadro decorativo (foto abaixo) feito com madeixas da donzela está no Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino, no Politeama.

3 – Triângulo amoroso ou simples rejeição?

Se Júlia traíra ou não o professor Lisboa, é impossível saber. Ele nunca explicara, com detalhes, o motivo do assassinato. Apenas especula-se que foi um crime de ciúme. E uma das versões mais aceitas se referem a um jovem estudante de Direito, de Recife, que estava de férias em Salvador.

O repórter Alexandre Lyrio, no caderno Correio Repórter em outubro de 2006 sobre o Caso Júlia Fetal, compara Lisboa ao personagem Bentinho, do clássico machadiano Dom Casmurro. "Atormentara-se pela dúvida. Apenas especulou estar sendo traído pela sua Capitu, a adorável Júlia. Como na literatura, a história verídica não revela ao certo se houve, de fato, infidelidade. Sem ponderações, João Estanislau levou o ciúme ao limite. Teria mandado derreter as alianças de noivado, fundida em peça de extremidade penetrante, recheada de pólvora. Um ourives da cidade baixa esculpira o objeto", diz, citando a lenda que se perpetuou por décadas.

Se Júlia era ou não um coração de eterno flerte, há controvérsias. Mas a literatura, inúmeras vezes, tratou de imaginar. Jorge Amado, no livro Bahia de Todos os Santos, relembra o caso e reproduz os conceitos preconceituosos de parte da sociedade da época. Ressalta os dotes namoradeiros da vítima, ante o crime brutal.

“Ah, era inconstante o coração de Júlia Fetal. Moça bonita, a todos namorava. Estudantes, alferes, nobres, literatos(...) Nascera para amante, beijos furtados, para encontros clandestinos(...) Um professor doido de amor noivou com ela(...) O professor era ciumento e ela namoradeira(...) Um dia o estudante, no outro o policial, no sábado o poeta(...) Estrangulado de ciúmes, o professor fundiu uma bala de ouro(...) Ergueu a arma. A bala alojou-se no coração inconstante de Júlia Fetal”. Se traiu ou não, só nos resta a imaginação. 

4 – Famílias tradicionais e o impacto do crime
Júlia Fetal era filha do negociante português João Batista Fetal, que morreu e deixou viúva a francesa Julie Fetal, mãe da jovem e descrita como metódica e enérgica. 

Segundo Pedro Calmon, Júlia recebeu uma educação que não lhe faltara nada para os padrões da época: aprendeu pianoforte (instrumento que é 'pai' do piano atual), dedicou-se ao estudo da gramática francesa, da religião, das letras e adquiriu habilidades para pintar e bordar (no sentido literal, nesse caso), tudo que uma moça de família abastada poderia ter acesso. Foi inclusive aprendendo inglês que conhecera o noivo e assassino, inicialmente professor particular.

A tragédia impressionou e deixou a cidade dividida. Era assunto para discussões exaltadas nas ruas. O mito de valorização do crime romântico ganhou força e havia os que repugnavam e os que defendiam o professor Lisboa. Penalistas, cientistas e psicólogos tentavam entender as razões de um ato sem razão, como lembra o repórter Alexandre Lyrio.

Ao restante do povo cabiam as suposições, os boatos, os ditados populares e as verdades analisadas em cada pequeno detalhe.

“Nenhum outro assunto era mais importante. Não houve fato na terra mais discutido, mais esmaltado de cores sentimentais e lendas românticas”, comentou Cid Teixeira, em entrevista ao CORREIO em 2006. 

5 – Julgamento que parou a cidade
Em 28 de setembro de 1847, às 9h, o professor Lisboa sentara no banco dos réus do Tribunal de Relação. Foi um acontecimento que parou a cidade. Na parte externa do júri, as pessoas se aglomeravam. Dentro do recinto, até o corpo de jurados permanecia em constante rebuliço. O falatório seguiu, sem descanso, por 24 horas.

A defesa elaborou uma inédita estratégia para resistir aos ataques. Pela primeira vez solicitou-se a realização de exame de saúde, tendo o réu se submetido a testes psíquicos dias antes do julgamento. “A uma hora e 20 minutos da tarde compareceu João Estanislau da Silva Lisboa em casa de residência do senhor juiz municipal para se submeter ao exame de sanidade que requereram seus advogados”, escreveu o jornal Correio Mercantil de 20 de setembro de 1847. Uma suposta “loucura moral” seria a base da defesa.

A tese de “demência amorosa” se fundamentaria nos discursos de psicólogos, médicos e fisiologistas. A acusação foi na direção contrária.

"Júlia Fetal
De família muito boa
Morreu assassinada
Pelo doutor Lisboa"
(Cantiga Popular em 1847)

O código da época previa até a pena de morte ou prisão perpétua para casos de assassinato. Para condená-lo à forca, os acusadores recorriam à frieza dos artigos e parágrafos. A defesa usou depoimentos apaixonados. Havia extraordinário entusiasmo nas ruas.

Na data do julgamento, a cidade estava realmente dividida. Apesar dos apoios que conseguiu, o réu ficaria em silêncio, mesmo nos momentos mais ásperos do debate.

“Nunca se lhe ouviu explicação, lamento soluçado, uma palavra que fosse”, escreveu Pedro Calmon. 

Qualquer que fosse a sentença do juiz, ele aceitaria - prometeu a si mesmo. Se não fosse à forca, ficaria na cadeia o tempo que fosse determinado. Às 9h do dia seguinte, o veredito do conselho de sentença. Nem a forca, nem a prisão perpétua: 14 anos de cárcere. 

A comoção tomou conta do recinto, diante do resultado, considerado quase como absolvição. “Não lhe tiraram a vida. Contentaram-se em suprimir-lhe a mocidade”, comentou Pedro Calmon, escritor que veio a falecer em 1985.

6 – Cumprimento de pena e visita de Dom Pedro II no Barbalho 

O doutor Lisboa foi então cumprir sua pena no Forte do Barbalho. A cela era recoberta de livros. Havia alguns assentos improvisados, o quadro negro, e um mapa na parede. Ali ele passou os primeiros anos do cárcere, até ter a chance de pedir clemência. Não o fez.

A situação causou estranheza ao imperador Dom Pedro II, que não entendeu por que o eminente professor abdicou da comutação do castigo. Curioso, baixou no Forte do Barbalho em 30 de outubro de 1859. Com fardamento de gala, a guarnição do imperador chegou à cela com cara de sala de aula. O diálogo foi curto.

“Por que o senhor não requereu o indulto?”, questionou o imperador. “Permita-me, senhor, que nada requeira. Cumprirei a pena até o fim”, respondeu Lisboa.

Surpreso com a resposta, a majestade voltou a examinar os aposentos e, vendo que não havia o que contestar, apenas sorriu. João Estanislau ficaria ali todos os longos 14 anos.

7  –  Retorno à sociedade
“Sofreu-os com imperturbável serenidade”. Assim Pedro Calmon descreveu os anos de cárcere do assassino de Júlia Fetal. Mas o cárcere escuro não o impediu de recuperar-se moralmente. Professor de renome, manteve a reputação. Recebia visitas de mestres, colegas e discípulos, atraídos pelo saber profundo, pela maneira diferenciada de ensinar. 

Certo dia, o presidente da província foi solicitado. Os alunos queriam permissão para ouvir as lições lá mesmo, no Forte do Barbalho. Parecia-lhe desatino, mas concedeu autorização. A partir daquela data o doutor Lisboa deixaria de ser apenas o notável professor. Tornou-se célebre. “Ouvido como um oráculo, respeitado como um sábio, a quem os pais que queriam para os filhos uma boa educação, iam pedir à cadeia que tomasse à sua conta”, arremata Pedro Calmon. Para a Justiça, um criminoso. Para os alunos, mestre paternal. 

Morador de casarão no topo da Ladeira da Montanha, gostava de nadar na baía, de madrugada.

“Nadava da Jequitaia em direção à Barra”, escreveu seu biógrafo e ex-discípulo Anísio Circundes. 

Sem o mar e a liberdade, mas ainda com o status de mestre, o professor dirigiu, da cadeia mesmo, a partir de 1858, toda a pedagogia da melhor instituição de ensino da província, o Colégio São João, no Corredor da Vitória. “Marcou com sua competência e tragédia a vida do colégio e da educação na Bahia”, definiu Cid Teixeira no prefácio de A Bala de Ouro.

Esgotado o período de cárcere, em 1861, Estanislau assumiu pessoalmente a direção da escola. O professor era amado. Em aparições públicas, os alunos faziam coro:

“Viva o nauta que nos guia
 Ao campo da erudição
Que além de ser sábio mestre
Tem de pai o coração”. 

Os mesmos que o adoraram saíram dali pra vida social. Estanislau formou doutores, industriais, militares, professores como ele. Discípulos que mais adiante reformariam a pedagogia da capital. O auge do reconhecimento ao professor se deu numa festa pomposa, no Palácio da Vitória, com a presença, mais uma vez, do imperador Dom Pedro II.


Livre e reinserido, foi buscar novos ares na Europa. No velho continente publicou a obra-prima da sua trajetória: o Atlas Elementar de Geografia, editado em Bruxelas, na Bélgica, e que entrecruzava ideias de notáveis, como Humboldt e Michelet. Um dos poucos exemplares de que ainda se tem notícia pode ser encontrado na Biblioteca Pública do Estado, nos Barris.

Mapas, textos científicos e imagens inovadoras eram o prenúncio do ensino da geografia social, já em 1877. “Um dos mais modernos livros didáticos que surgiriam no Brasil do século XIX”, reforça Waldir Oliveira, da Academia de Letras da Bahia. 

O historiador Nelson Cadena lembra ainda que João Estanislau teve atuação destacada na epidemia de febre amarela de 1850.

"Ele pegou a doença na cadeia e foi curado no Hospital da Misericórdia. Preferiu ficar após ter alta médica para cuidar dos outros enfermos e foi um dedicado voluntário colaborador", comenta, ao lembrar que foi em função dessa solidariedade que a Santa Casa de Misericórdia solicitou ao Imperador seu indulto. 

O professor Lisboa foi morar em Lisboa, onde veio a morrer, pobre e sozinho, a 9 de fevereiro de 1878, na Casa de Saúde Libonense. O certificado de óbito atestou doença no coração. “Matou-o finalmente o velho coração que o fizera matar”, resume Pedro Calmon. 

Durante o tempo em que esteve vivo, ninguém ousaria mencionar o assunto em sua presença. Houve apenas uma exceção. Um dos seus alunos, em meio a importante evento cívico, quebrou silêncio de décadas: “Foi o senhor mesmo que matou aquela moça?” Respondeu: “Sim, fui eu”.

8 – ‘Vizinhança’ de Catarina Paraguaçu na Graça e bala sem ouro
O historiador Nelson Cadena lembra que Júlia Fetal mereceu honras póstumas sem precedentes na Bahia, quando foi morta. Para ilustrar isso, lembra que seus restos mortais estão depositados em uma urna, próxima do altar principal da Igreja da Graça, em frente da urna que contém os restos mortais de Catarina Paraguaçu.

No túmulo, um soneto da poetisa Adélia Fonseca, que resume o sentimento de parte da sociedade na época. 


"Estavas Bela Júlia descansada Na flor da juventude e formosura Desfrutando as carícias e ternura Da mãe que por ti era idolatrada A dita de por todos ser amada Gozavas sem prever tua alma pura Que por mesquinho fado à sepultura Brevemente serias transportada Eis que de fero algoz a destra forte Dispara sobre ti Júlia querida O fatal tiro que te deu a morte! Dos olhos foi-te a luz amortecida E do rosto apagou-te iníqua sorte A branca, viva cor, com a doce vida."

Quanto ao artefato, que acreditou-se por décadas se tratar de um material fundido das alianças de ouro do casal, a informação não procede. A bala, aliás, também está em exposição no Instituto Feminino, no Politeama.

"A bala é comum, de chumbo, e vulgar", observou o doutor Colombo Espínola, médico baiano em meados do século passado.


"Ao desenterrar a pequena peça de metal por entre os restos mortais da jovem, decretava também o sepultamento de uma fábula. Desvendava-se, enfim, a faceta alegórica de um crime célebre, ocorrido quase um século antes", comentou o repórter Alexandre Lyrio, que se debruçou sobre o caso em 2006.

9 – Nome de rua no Nazaré 

Numa viela que liga o Convento do Desterro ao Fórum Ruy Barbosa, Júlia Fetal continua sendo um mito. Até hoje, moradores ainda discutem o assunto. Em 2006, havia até quem acreditasse que ela já tinha vivido ali. “Júlia Fetal morou numa dessas casas. Por isso o nome da rua”, afirmou uma moradora antiga ao repórter Alexandre Lyrio, em 2006.

10 – Médium diz ter conversado com espírito de Júlia Fetal

As lendas sobre o caso, claro, ainda se multiplicam. Aliás, cabem até relatos sobrenaturais, como o do educador João Cláudio Souza, que certa feita, na Igreja da Graça, ouviu uma voz pedindo-lhe ajuda e socorro. Segundo ele, era Júlia Fetal. A partir dali, iniciaria um trabalho espiritual em favor do espírito da jovem, livrando-a das amarras que a vinculavam a João Estanislau. “Hoje Júlia foi levada pela espiritualidade para ser doutrinada”. A experiência é narrada no livro Trabalhadores da Luz, editado em 2006.

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A FAMIGLIA "ESPÍRITA" UNIDA. Hoje o "médium" e latifundiário João Teixeira de Faria, o João de Deus, se entregou à polícia de Goiás, a pedido do Ministério Público local e da Polícia Civil. Ele é acusado de assediar sexualmente mais de 300 mulheres e de ocultar um patrimônio financeiro que o faz um dos homens mais ricos do Estado. João nega as acusações de assédio, mas provas indicam que eles ocorreram desde 1983. Embora os adeptos do "espiritismo" brasileiro façam o possível para minimizar o caso, ele é, certamente, a ponta do iceberg de escândalos ainda piores que podem acontecer, que farão, entre outras coisas, descobrir as fraudes em torno de atividades supostamente mediúnicas, que, embora com fortes indícios de irregularidades, são oficialmente legitimadas por parecerem "agradáveis" e "edificantes" para o leitor brasileiro médio. O caso João de Deus é apenas o começo, embora ele não tenha sido o único escândalo. Outro

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Estamos diante da grande farsa que se tornou o Espiritismo no Brasil, empastelado pelos deturpadores brasileiros que cometeram traições graves ao trabalhoso legado de Allan Kardec, que suou muito para trazer para o mundo novos conhecimentos que, manipulados por espertos usurpadores, se reduziram a uma bagunça, a um engodo que mistura valores místicos, moralismo conservador e muitas e muitas mentiras e safadezas. É doloroso dizer isso, mas os fatos confirmam. Vemos um falso Humberto de Campos, suposto espírito que "voltou" pelos livros de Francisco Cândido Xavier de forma bem diferente do autor original, mais parecendo um sacerdote medieval metido a evangelista do que um membro da Academia Brasileira de Letras. Poucos conseguem admitir que essa usurpação, que custou um processo judicial que a seletividade de nossa Justiça, que sempre absolve os privilegiados da grana, do poder ou da fé, encerrou na impunidade a Chico Xavier e à FEB, se deu porque o "médium" mi

Se Chico Xavier fosse progressista, não haveria a ascensão de Jair Bolsonaro

É um dever questionarmos, até com certa severidade, o mito de Francisco Cândido Xavier. Questionar sem ódio, mas também sem medo, sem relativismos e sem complacências, com o rigor de quem não mede palavras para identificar erros, quando estes são muito graves. Vale lembrar que esse apelo de questionar rigorosamente Chico Xavier não vem de evangélico alucinado nem de qualquer moleque intolerante da Internet - até porque o dito "espiritismo" brasileiro é uma das religiões não só toleradas no país, mas também blindadas pelas classes dominantes que adoram essa "filantropia de fachada" que traz mais adoração ao "médium" do que resultados sociais concretos - , mas da própria obra espírita original. É só ler Erasto, que recomendava rigor no repúdio e no combate aos deturpadores dos ensinamentos espíritas. E mais: ele lembrava que eventualmente os maus espíritos (ou, no contexto brasileiro, os maus médiuns) trazem "coisas boas" (as ditas "mens

Chico Xavier e Divaldo Franco NÃO têm importância alguma para o Espiritismo

O desespero reina nas redes sociais, e o apego aos "médiuns" Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco chega aos níveis de doenças psicológicas graves. Tanto que as pessoas acabam investindo na hipocrisia para manter a crença nos dois deturpadores da causa espírita em níveis que consideram ser "em bons termos". Há várias alegações dos seguidores de Chico Xavier e Divaldo Franco que podemos enumerar, pelo menos as principais delas: 1) Que eles são admirados por "não-espíritas", uma tentativa de evitar algum sectarismo; 2) Que os seguidores admitem que os "médiuns" erram, mas que eles "são importantes" para a divulgação do Espiritismo; 3) Que os seguidores consideram que os "médiuns" são "cheios de imperfeições, mas pelo menos viveram para ajudar o próximo". A emotividade tóxica que representa a adoração a esses supostos médiuns, que em suas práticas simplesmente rasgaram O Livro dos Médiuns  sem um pingo de es

Carlos Baccelli era obsediado? Faz parte do vale-tudo do "espiritismo" brasileiro

Um episódio que fez o "médium" Carlos Bacelli (ou Carlos Baccelli) se tornar quase uma persona non grata  de setores do "movimento espírita" foi uma fase em que ele, parceiro de Francisco Cândido Xavier na cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro, estava sendo tomado de um processo obsessivo no qual o obrigou a cancelar a referida parceria com o beato medieval de Pedro Leopoldo. Vamos reproduzir aqui um trecho sobre esse rompimento, do blog Questão Espírita , de autoria de Jorge Rizzini, que conta com pontos bastante incoerentes - como acusar Baccelli de trazer ideias contrárias a Allan Kardec, como se Chico Xavier não tivesse feito isso - , mas que, de certa forma, explicam um pouco do porquê desse rompimento: Li com a maior atenção os disparates contidos nas mais recentes obras do médium Carlos A. Bacelli. Os textos, da primeira à última página, são mais uma prova de que ele está com os parafusos mentais desatarraxados. Continua vítima de um processo obsessi