OS FALSOS SÁBIOS.
Muitas pessoas estão acostumadas com a imagem adocicada de Francisco Cândido Xavier, moldada de maneira linear com uma narrativa que parece enredo de novela com um quê de contos de fadas. Chico Xavier foi beneficiado por uma narrativa que só mostra aspectos agradáveis e permite que ele seja o único indivíduo na qual a fantasia prevalece sobre a realidade, em sua biografia.
É terrível que, num país de gente muito ignorante - inclusive pessoas que se dizem "esclarecidas" e tem mania de dar justificativas a tudo - tenha pessoas mais velhas tão vulneráveis a narrativas idiotizadas, infantilizadas, sem saber das armadilhas que estão por trás.
Chico Xavier não foi essa pessoa admirável que se pinta por aí. Sua narrativa foi, na verdade, um enredo publicitário tomado emprestado de Malcolm Muggeridge e trabalhado pela mídia hegemônica a partir das manobras da Rede Globo de Televisão, aliada da ditadura militar.
Embora a imagem de Chico Xavier cause tanta fascinação (obsessiva) em seus seguidores, os aspectos agradáveis que se fala a respeito dele são vagos, simplórios e superficiais. Além disso, os apelos de "olhar com o coração" são ridículos e piegas e teriam a rejeição severa de Allan Kardec, que veria essa emotividade mórbida uma afronta à lógica e ao bom senso.
Na verdade, o mito de Chico Xavier trabalhado nos anos 1970 e vigente até hoje é algo feito se aproveitando da ingenuidade e da desinformação do povo brasileiro, apegando os aspectos não só polêmicos e negativos, mas preocupantemente deploráveis, da trajetória do anti-médium mineiro.
Esquecemos que Chico Xavier era, naquela época da ditadura militar, o equivalente ao Olavo de Carvalho nos dias de hoje. Um sujeito ao mesmo tempo religioso e pitoresco, reacionário e pedante, tido erroneamente como "sábio" e até "filósofo". Olavo é um ex-astrólogo dado a criar um discurso rebuscado para defender asneiras como se fossem "verdades" e é considerado guru de Jair Bolsonaro (que adaptou para si o lema "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" do "médium").
Até Chico Xavier ganhar uma nova narrativa, mais "limpa e cheirosa" e embalada para a histeria das paixões religiosas, ele estava associado a episódios bem barra pesada, que não condizem com o mito de "pessoa simples, bondosa e honesta" que tanto se insiste em trabalhar em relação a ele.
Só entre 1969 e 1974, quando a Era Wantuil - equivalente ao "todo-poderoso" presidente da FEB, descobridor e parceiro de Chico, Antônio Wantuil de Freitas - estava no fim, o "médium" estava envolvido em, pelo menos, quatro escândalos.
Em 1969, foi revelado que Chico Xavier e Wantuil de Freitas estabeleceram um acordo comercial no qual a renda dos livros "psicográficos" iria toda para os cofres da FEB, incluindo a conta pessoal do seu presidente. Esse acordo era antigo, desde 1932, e foi descoberto quando veio à tona as negociações comerciais das traduções dos livros do "médium".
Chico Xavier consentiu com isso e ele mesmo não queria tocar em dinheiro. O "médium" vivia como se fosse um membro da realeza britânica. O fato dele não pagar suas contas, sendo as mesmas pagas por terceiros, não significa que Chico tenha mantido a pobreza de sua origem familiar. Pelo contrário, ele se comportava como uma celebridade que recusava o cachê de um compromisso profissional, o que não significa voto de pobreza nem de humildade.
No entanto, quando estourou o escândalo, Chico Xavier tirou o corpo fora e, maliciosamente, declarou "estar muito triste" com a notícia, fazendo que os outros acreditassem que o faturamento dos livros era "para a caridade" (sua desculpa oficial) e que o "médium" não estava compartilhando com tais interesses, o que não é verdade. Se Chico assumisse seu apoio ao mercenarismo editorial, teria posto sua fama de ídolo religioso em xeque-mate.
Em 1970, foi a vez dos repórteres da revista O Cruzeiro encontrarem um material com roupas e objetos que eram usados pela farsante Otília Diogo, "médium" denunciada por suspeitas de fraude em espetáculos de materialização. Isso a desmascarou completamente.
Todavia, Chico Xavier, que teria apoiado a farsa, o que fez romper a amizade dele com seu discípulo Waldo Vieira, não foi considerado cúmplice, tendo sido livrado de ser tão culpado quanto Otília. Mas a prova do envolvimento de Chico Xavier na farsa foi trazida por um "fogo amigo": o fotógrafo Nedyr Mendes da Rocha, registrando o ilusionismo de Otília, mostrava Chico bastante comunicativo, alegre e falante nos bastidores, dando indícios de que estava por dentro da farsa.
Em 1971, Chico Xavier foi entrevistado no programa Pinga Fogo, da TV Tupi de São Paulo. Na longa entrevista, em duas partes, Chico defendeu a ditadura militar de maneira convicta, expondo seu reacionarismo explícito, que muitas pessoas se recusam a admitir, tão envolvidas com a imagem fantasiosa que têm dele. Mas Chico Xavier apoiou tanto a ditadura militar que disse que o AI-5 foi "necessário" para combater o "radicalismo de grupos esquerdistas".
Em 1973, a Federação "Espírita" do Estado de São Paulo (FEESP), única entidade regional que era parceira da FEB nos tempos de Wantuil, planejou uma nova tradução das obras de Allan Kardec que seriam radicalmente deturpadas ao sabor do roustanguismo. Chico Xavier apoiou com entusiasmo a iniciativa, mas quando José Herculano Pires denunciou o plano, que acabou não sendo realizado, o "médium", covardemente, recuou.
Oportunista, Chico Xavier, juntamente com Divaldo Franco, aproveitaram a crise que havia no "movimento espírita" e, diante da crise dos chamados "místicos", sobretudo os herdeiros de Wantuil na cúpula da FEB (incluindo Luciano dos Anjos, que denunciou, em 1962, que Divaldo começou plagiando Chico, que já era plagiador) para estabelecer uma espécie de "confraternização das raposas com as galinhas". As "raposas" eram Chico e Divaldo.
Com isso, os dois "médiuns" se colaram aos "científicos" e fizeram uma promessa que eles não só nunca cumpriram como também não tiveram interesse em cumprir, que é a de recuperar os postulados espíritas originais. No máximo, Divaldo Franco, da boca para fora, expunha em palestras e depoimentos (inclusive na TV) as ideias do Espiritismo original. Já Chico Xavier misturava alhos com bugalhos, criando um engodo em que ideias de Kardec coexistiam com ideias roustanguistas.
Chico Xavier era considerado pitoresco e isso corresponde ao que Olavo de Carvalho é hoje. E era uma figura estranha, irregular, que havia aprontado muita confusão e tinha ideias que pareciam delírios místicos aliados a um catolicismo medieval. Daí ser muito tendencioso, embora pareça agradável e deixe as pessoas acomodadas na zona de conforto do deslumbramento religioso, mostrar Chico Xavier como se fosse uma fada-madrinha do mundo real.
As narrativas que exaltam o "médium" são infantilizadas, tolas, não oferecem informação objetiva alguma, apelam para a cegueira emotiva dos "olhos do coração" e mais mistificam do que esclarecem as pessoas. E isso mostra o quanto é perigoso o jogo do discurso, quando mentiras podem virar "verdades indiscutíveis" quando um considerável número de pessoas se envolve para trabalhar o mito de alguém, para o bem e para o mal, com um habilidoso discurso.
À maneira de um Lula às avessas, Chico Xavier é glorificado pelo que nunca fez, como uma "caridade" que nunca passou dos limites do Assistencialismo e, mesmo assim, era praticada por terceiros. Já as fraudes que Chico Xavier fez, como a literatura fake iniciada em Parnaso de Além-Túmulo e consagrada com a usurpação criminosa da memória de Humberto de Campos, estão cheias de provas consistentes e mesmo assim ninguém arrisca sequer uma denúncia oficial.
Da mesma forma, as "cartas mediúnicas" - entretenimento que Chico Xavier passou a fazer quando passou a ser blindado sob o roteiro inspirado em Malcolm Muggeridge - também eram cheias de irregularidades, com as assinaturas que mais pareciam com a caligrafia de Chico do que com a do respectivo morto e com informações trazidas pela leitura fria (interpretação de dados e reações psicológicas de um depoente) dos parentes dos mortos. E houve fartas provas disso, mas Chico foi inocentado.
Pior: as "cartas mediúnicas" criavam um espetáculo que parecia com aqueles das "tábuas Ouija" da Europa do século XIX. Um espetáculo mórbido, catártico, que fazia Chico Xavier se promover explorando as tragédias familiares, alimentando o sensacionalismo da imprensa e criando nele um fanatismo religioso diante de um evento tão deplorável, mas tido como "sua maior caridade".
Esse evento, aliás, tentava abafar as tensões sociais da ditadura militar com essa "cortina de fumaça" que deixava as pessoas escravas das paixões religiosas. E isso fez com que Chico Xavier se popularizasse de maneira bastante perigosa, como o que tememos que se faça hoje com Olavo de Carvalho, ambos figuras pitorescas e reacionárias que deveriam ser condenadas ao esquecimento e ao desprezo público.
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