Não é porque um sujeito é um ídolo religioso que devemos concebê-lo da forma que quisermos. A chamada "liberdade da fé" tem limites e, paciência, somos seres racionais, e a realidade, quando deixada de lado em prol de fantasias agradáveis, reage com decepções ainda mais dolorosas.
É esse o problema que envolve Francisco Cândido Xavier diante de pessoas progressistas. O grande deturpador do Espiritismo, que rebaixou o legado trabalhoso da Codificação a uma mera repaginação do Catolicismo medieval, sempre foi uma figura extremamente conservadora, mas eventualmente dava jeito para parecer mais educado com a exposição de suas opiniões.
Mas a narrativa que o esquema Rede Globo-ditadura com o roteiro importado de Malcolm Muggeridge, que no final dos anos 1970 moldou a "imagem" que Chico Xavier tem hoje, criou várias distorções. A visão exageradamente agradável, pretensamente ecumênica e que transformava o "médium" numa "fada-madrinha do mundo real", criou várias inverdades em torno dessa biografia adocicada, a única em que a fantasia persiste a todo custo sobre a realidade.
Isso criou certos incômodos. As esquerdas brasileiras, sobretudo pessoas relativamente mais jovens, que eram crianças quando entraram na escola durante a ditadura militar, foram culturalmente vulneráveis a valores de centro-direita que apresentavam um falso aparato de humildade e presença popular.
Daí a constrangedora atitude das esquerdas em acolher, com persistente ingenuidade e uma credulidade servil, ao processo de bregalização cultural confundindo a abordagem dominante, que tratava o povo pobre como uma caricatura, com uma pretensa exaltação do povo pobre e uma hipotética evocação do triunfo das classes populares.
Ativistas de esquerda que passaram a acreditar, por exemplo, que o "funk carioca" era uma "rebelião libertária" e o "sertanejo" um foco de zapatismo nas roças brasileiras, no entanto, caíram no ridículo e não é difícil perceber por que as esquerdas, acreditando que o Brasil culturalmente brega seria mais libertário e igualitário, se decepcionaram redondamente quando essa atitude influiu no enfraquecimento dos movimentos esquerdistas.
Afinal, todo esse discurso a favor do brega e do chamado "extremamente popular" era uma manobra para deixar o povo pobre "distraído" no entretenimento marcado pela mediocridade musical, pela idiotização comportamental e por um senso de atraso ridículo na chegada tardia dos modismos estrangeiros no Brasil. Uma espécie de "pop caipira ou suburbano" que nunca teve de libertário e que era voltado apenas a interesses comerciais e político-conservadores (por parte da mídia) estratégicos.
A atuação participativa do povo pobre nos debates políticos se enfraqueceu para quase nada, as lideranças de esquerda e seus jornalistas e ativistas associados acabaram falado sozinhos e a direita aproveitou isso para criar seu "ativismo" e, assim, fez crescer feito bola de neve um reacionarismo que, desde 2005, se projetava das redes sociais para, no auge, culminar na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, adorado por muitos ícones dessa "cultura popular" comercial e midiática.
No âmbito do futebol e da religião, a ingenuidade é a mesma. E, por ironia, os ídolos da breguice cultural, do futebol e da religião cortejados pelas esquerdas mais ingênuas demonstram, depois, um direitismo convicto e bastante reacionário. Foi no caso da adesão de vários deles à campanha presidencial de Jair Bolsonaro, o que fez muitos esquerdistas caírem da cadeira.
PÉ-FRIO
Chico Xavier foi uma das mais reacionárias personalidades religiosas da História do Brasil. Seu anti-comunismo era convicto, certeiro e o acompanhou por toda a vida. Apoiou o golpe militar de 1964, a ditadura militar no seu curso, a candidatura de Fernando Collor e, no fim da vida, inclinou-se a apoiar o PSDB.
Mesmo a polêmica do "futuro líder" que interpretações sobre uma suposta previsão de 1952, atribuída ao "espírito" André Luiz (na verdade, um personagem fictício), chegaram a creditar, nos últimos anos, como Fernando Collor, Aécio Neves, Sérgio Moro e Jair Bolsonaro, pode ser entendida como uma "profecia" na qual não havia uma personalidade definida, mas, sim, um modelo de "líder político", liberal-conservador, que Chico Xavier sempre defendeu em sua vida.
Pelo menos em nenhum momento se leu ou se ouviu de Chico Xavier e "seus espíritos" uma previsão de que um sujeito barbudo, roliço mas de feições enérgicas, ainda que com um coração sensível e jeito bonachão, seria o grande líder da humanidade no futuro. As atribuições de "esquerdismo" a Chico Xavier são tão superficiais e cheias de equívocos, porque se baseiam em ideias soltas e concepções fantasiosas, além de argumentação frágil movida pelo jogo de aparências.
Chico Xavier também é considerado pé-frio para personalidades esquerdistas, mesmo aquelas nascidas na Minas Gerais onde nasceu o "médium". Juscelino Kubitschek e Dilma Rousseff viram suas carreiras políticas perderem quando deram alguma consideração a Chico Xavier.
Juscelino deu à FEB status de "instituição de utilidade pública" em 1960. Em seguida, não conseguiu eleger seu candidato à sucessão, o marechal legalista, progressista e democrático Henrique Lott (o mesmo que garantiu a posse de JK, em 1955, com um contra-golpe), foi cassado pela ditadura militar, não se elegeu membro da Academia Brasileira de Letras e morreu num acidente de carro em circunstâncias bastante suspeitas.
Dilma recebeu o livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, presente (de grego?) da FEB em 2011. Em 2013 começava a surgir núcleos de oposição raivosa à presidenta, que até conseguiu ser reeleita, mas um caminho foi aberto para o golpe, com um Legislativo ultraconservador e ela perdeu o mandato pela metade, através de um confuso, mas certeiro, processo de impeachment e, recentemente, ela ainda não conseguiu se eleger senadora na campanha de 2018.
Enquanto isso, Fernando Collor e Jair Bolsonaro, de perfil mais conservador, foram favorecidos pelas energias de Chico Xavier. Collor até perdeu o mandato em 1992, mas depois de um hiato através da suspensão de seus direitos políticos por oito anos, voltou à cena política em condições bastante favoráveis e mesmo eventuais denúncias de corrupção não lhe arranham seu status.
Por outro lado, aqueles que iriam lhe servir de obstáculos, como o irmão Pedro Collor e o tesoureiro Paulo César Farias, o PC Farias, morreram de forma que denúncias contra o ex-presidente ficassem eternamente sem provas.
O último mau agouro dado por Chico Xavier foi a reprodução de um texto pelo colunista Ricardo Kotscho, no portal R7, que abrigava o blog Balaio do Kotscho. O portal R7 é do grupo Record, que após o episódio tornou-se entusiasmadamente bolsonarista, e contribuiu para a derrota eleitoral de Fernando Haddad. Um ex-executivo de jornalismo da Record, Douglas Tavolaro, estará à frente da franquia brasileira da rede de notícias CNN, dos EUA, que no Brasil será solidária a Bolsonaro.
FALSO ESQUERDISMO
Devemos tomar cuidado quando Chico Xavier, em seus depoimentos e em obras atribuídas a "espíritos diversos", adota uma postura aparentemente "educada" em relação a certas posições progressistas. Isso não pode, de forma alguma, ser confundido com apoio à essas causas, até porque uma análise mais cuidadosa demonstra uma postura de aversão ou reprovação.
No caso da causa LGBTT - então creditada, apenas, como "homossexualismo" - , Chico Xavier, no começo da década de 1970, dizia que os homossexuais "eram dignos do mais absoluto respeito". No entanto, ele atribui ao homossexualismo uma "confusão espiritual" motivada pela encarnação, o que demonstra que Chico Xavier tratava o fenômeno como uma "doença".
Sem que viva alma soubesse, Chico Xavier foi um dos pioneiros da defesa da "cura gay", hoje uma causa tida como "exclusiva" pelos evangélicos neopentecostais, a partir das posições declaradas de gente como Marco Feliciano, Silas Malafaia e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro, Damares Alves, aquela que viu Jesus subindo numa goiabeira.
No caso do comunismo, uma mensagem atribuída a Emmanuel deve ser entendida com muita cautela, porque os apelos do texto são igrejeiros e emocionais, além de ser um texto vago e sem um pingo da objetividade que as abordagens textuais de esquerda têm, mesmo quando se voltam a uma ideia, bastante explorada pelo discurso religioso, de fraternidade. Vejamos o que está no livro Coletânea do Além, de 1945:
"Como devemos encarar o comunismo cristão?
O comunismo em suas expressões de democracia cristã está ainda longe de ser integralmente compreendido como orientador de vossas forças político-administrativas.
Somente serão entendidas as suas concepções adiantadas, à luz dos exemplos do Cristo, quando reconhecerdes que o Evangelho não quer transformar os ricos em pobres e sim converter os indigentes em ricos do mundo, fazendo desabrochar em cada indivíduo a concepção dos seus deveres sagrados, em face dos problemas grandiosos da vida.
Comunismo ou socialismo cristão não pode ser a anarquia e a degradação que observais algumas vezes em seu nome, significando, acima de tudo, a elevação de todos, dentro da harmonia soberana e perfeita.
Quando o homem praticar a fraternidade, não como obrigação imposta pelas justas conveniências, mas como lei espontânea e divina do seu coração, reconhecendo-se apenas como usufrutuário do mundo em que vive, convertendo as bênçãos da natureza, que são as bênçãos de Deus, em pão para a boca e luz para o espírito, as forças políticas que dirigem os povos nortear-se-ão sem guerras e sem ambições, obedecendo aos códigos de solidariedade comum.
Semelhante estado de coisas, porém, nunca será imposto por armas ou decretos humanos. Representará o amadurecimento da consciência coletiva na compreensão dos legítimos deveres da fraternidade e somente surgirá, no mundo, por efeito do conhecimento e da educação de cada indivíduo".
O texto é de uma sutil hipocrisia, embora aparentemente educado e voltado à suposta exaltação da fraternidade. Mas, numa análise mais cuidadosa, o texto atribuído a Emmanuel, na verdade, sugere a substituição do Comunismo pelo Catolicismo de moldes medievais. Há uma referência da reprovação radical dos decretos humanos, e uma superficial e pouco convincente referência da questão da pobreza: "o Evangelho não quer transformar os ricos em pobres e sim converter os indigentes em ricos do mundo".
O "ESQUERDISMO" QUE A DIREITA QUER
Há também uma estranha ênfase nos "deveres humanos", próprias de um discurso bastante conservador. Fala-se em "consciência coletiva" e não em individualidade. Além disso, temos que desconfiar da ideia "pró-esquerdista" de que o "Comunismo ou socialismo cristão não pode ser a anarquia e a degradação que observais algumas vezes em seu nome".
Devemos ter muito cuidado com isso. Essa não é uma declaração de Emmanuel solidária ao comunismo. Não é um ponto de vista de esquerda. Na revista Veja, nos seus momentos de reacionarismo histérico, vários textos, trazidos por pessoas como Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo, anti-petistas histéricos, também parecem "favoráveis à esquerda".
Dirigentes de grupos do "funk carioca" - um dos fenômenos culturais de centro-direita, que exaltavam o mercado e valores retrógrados como a objetificação da mulher, travestidos de "causas progressistas" - , como MC Leonardo (APAFUNK) e Bruno Ramos (Liga do Funk), também pareciam mais cobrar às esquerdas posições menos críticas mesmo sob o pretexto do falso apoio, o que, segundo seus críticos, lembrava muito as posturas do Cabo Anselmo nos anos 1960.
É aquela conversa de que "a esquerda é legal, desde que faça o que eu mandar". Um "esquerdismo" que a direita quer, um "sindicalismo" mais pelego, um "comunismo" com Estado mínimo, reforma trabalhista - sob a desculpa de "considerar também as necessidades dos patrões" - , algo que está por trás desse texto "generoso" de Emmanuel / Chico Xavier.
Tomadas de emoção, as pessoas leem este texto de Coletâneas do Além e vão para a cama dormir tranquilas, sonhando voarem sobre o Kremlim de mãos dadas com Chico Xavier, o "Peter Pan da gente grande". Até caírem da cama ao verem que leram o texto às pressas, sem fazer uma análise e sem verificar o que está por trás de palavras que parecem bondosas mas são traiçoeiras.
A Natureza mostra que a raposa não é um animal medonho. Com uma face graciosa, ela parece, à primeira vista, um animal doméstico, dócil e meigo, que entra tranquilamente num galinheiro como um cãozinho entra na casa do seu dono. Até depois se verem os estragos causados no galinheiro, com várias galinhas devoradas, no todo ou em parte, ninguém observa o aspecto ameaçador da raposa.
O texto de 1945 é traiçoeiro porque, pelo malabarismo das palavras, finge apoiar o comunismo. Mas o conteúdo do texto, mais de cobranças e ideias vagas que depreciam o esquerdismo como um todo, além de um estranho apelo emocional que não condiz à conduta racional dos esquerdistas, revela o tom traiçoeiro da mensagem atribuída a Emmanuel.
Devemos também ver os contextos e outras ideias de Emmanuel / Chico Xavier, que sempre apelavam para as pessoas nunca reclamarem nem questionarem coisa alguma, se submeterem à figura moralista-punitivista de Deus e aceitar calado e resignado as desgraças da vida. A própria ideia de "tóxico do intelectualismo" da ideologia chiquista-emmanueliana reprova até mesmo os esforços da mídia esquerdista, que apostam no aprimoramento do debate intelectual.
Portanto, a declaração incluída em Coletânea do Além - publicada num contexto em que os EUA foram provisoriamente tolerantes com o comunismo, devido a temporária aliança entre estadunidenses e soviéticos no combate ao nazismo (que então estava agindo fora de controle em relação ao ideal capitalista do qual se originou) - é direitista, dentro daquela perspectiva do "esquerdismo que a direita quer".
A ênfase igrejista também é um alerta para os ateus que ainda glorificam Chico Xavier, num processo de amor não-correspondido (os "espíritas" repudiam o ateísmo e o acusam de ser "fábrica de suicidas"). A ênfase na existência de Deus da obra de Chico Xavier é feita com um rigor religioso medieval que transforma essa controversa figura chamada Deus (que a obra original do Espiritismo admitia ser misteriosa, "causa primária" de todas as coisas) na forma antropomorfizada de um sujeito ao mesmo tempo paternal e punitivista.
Daí que as esquerdas devem evitar a adoração a Chico Xavier. Foram manifestações de adoração a ele que fizeram com que o Brasil se perdesse em aventuras golpistas de 2016 e 2018, e mais uma demonstração de adoração ao "médium" e o Brasil mergulhará num cenário ainda mais obscuro, até porque Bolsonaro já adiantou o esquema espalhando militares em vários cargos do governo. Esquerdas, deixem Chico Xavier para pessoas como Gustavo Bebianno.
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