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A pegadinha de Chico Xavier aos esquerdistas


Por que Francisco Cândido Xavier, um dos maiores bastiões do pensamento conservador brasileiro, é ainda cultuado por parte das esquerdas? Por que ele, com um reacionarismo de palavras dóceis mas com o mesmo apetite dos bolsonaristas, carrega sobre si, mesmo postumamente, a imagem de "progressista", criada sem motivo que fosse sequer plausível?

Simples. É que Chico Xavier sempre foi um sujeito esperto. Mesmo quando suas atitudes eram influenciadas por outras pessoas, como seu descobridor e dublê de empresário Antônio Wantuil de Freitas, então presidente da FEB, Chico Xavier adotava com gosto as artimanhas que seus semelhantes lhe recomendavam fazer. A cumplicidade de Chico Xavier em muitos atos que parecem não ser de sua decisão era, todavia, bastante notória.

Chico Xavier personificava o "mineiro que come quieto", o estereótipo do mineiro que parece ingênuo e calado, mas muito atento e malicioso. Além disso, foi o "médium" que levou às últimas consequências as traições que a FEB cometeu à literatura original do Espiritismo francês. Os ensinamentos originais kardecianos foram jogados no lixo, em prol da "liberdade religiosa" da catolicização em moldes medievais adotadas pelo "movimento espírita" no Brasil.

Ainda assim, o esperto Chico tentava se passar pelo "mais genuíno espírita" da História do mundo. A catolicização sempre foi defendida como suposta liberdade religiosa, mesmo quando adotava conceitos que contrariavam frontalmente os ensinamentos autênticos da Codificação.

Isso porque a FEB já trabalhou traduções catolicizadas da obra original de Allan Kardec e até lançou o risível volume A Prece Segundo o Evangelho, no qual há até mensagem fake atribuída ao pedagogo francês. Nessa mensagem, divulgada em 1889, um estranho Kardec pedia para conhecermos "a revelação da Revelação", uma alusão ao subtítulo de Os Quatro Evangelhos de Jean-Baptiste Roustaing. Um Kardec recomendando ler Roustaing? Absurdo!

Mas hoje o "espiritismo" brasileiro não precisa de Roustaing. Encontrou alguém que traduzisse o pensamento roustanguiano para o contexto brasileiro e esse alguém foi Chico Xavier, um sujeito ultraconservador, mas que teve esperteza suficiente para se passar por um pretenso progressista, tudo por uma habilidosa manipulação de discurso e propaganda.

Chico Xavier era antiquado até a medula, um caipira nascido em Pedro Leopoldo, então uma localidade rural do município de Santa Luzia, na Grande Belo Horizonte. Pedro Leopoldo é uma cidade de feições interioranas e, entre 1910 e 1959, mantinha aspectos rurais, tinha uma sociedade de formação ideológica medieval e ainda saudosa do Segundo Império.

Além disso, Chico Xavier era tão retrógrado que, no auge de sua carreira, tornou-se conhecido por usar perucas e ternos cafonas, ele mesmo um ídolo religioso com feições de astro brega. Mas como no Brasil veio essa lorota, nos últimos 15 anos, de que "brega é vanguarda", falácia que omite o fato de que o brega é a "cultura do atraso", movida pela assimilação tardia dos modismos fora de moda, então muitos nem conseguem perceber esse caráter de atraso.

FALSO FUTURISTA

E aí Chico Xavier, que gosta de coisas pitorescas e era fã de circo e de manipulação da mente humana, também gostava de ufologia, e isso criou um verniz "futurista" de tal forma que o anti-médium mineiro passou a ser visto como "dono do futuro", passando a brincar de profetismo barato a partir de 1938.

Sua "profecia da data-limite", cujo "limite" está previsto para agosto deste ano, era risível em vários aspectos. Conhecida através de um relato de um sonho de 1969, que Chico Xavier alegou ter tido após a notícia da viagem à Lua feita por astronautas dos EUA, mas que só foi dado em 1986 para Geraldo Lemos Neto, a "profecia da data-limite" possui graves falhas de abordagem sociológica e geológica.

Entre as irregularidades de previsão, está a hipótese de que o Chile seria poupado de catástrofes naturais, como terremotos, maremotos e erupções vulcânicas, que destruiriam a Califórnia (EUA) e o Japão. Isso é um absurdo. Se essas duas áreas seriam destruídas por terremotos, maremotos e erupções vulcânicas, o Chile desapareceria da mesma forma, por fazer parte do chamado Círculo de Fogo do Pacífico. Neste contexto, até uma boa parte da Argentina deixaria de existir.

Outras irregularidades, de natureza sociológica e biológica, são absurdas. A hipótese de que a população dos EUA, diante de uma catástrofe que aniquilaria esta nação, migraria para a Amazônia, é improcedente. Sociologicamente, os estadunidenses e, por associação, os canadenses, migrariam para o Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná e, em parte, também para Minas Gerais e Santa Catarina.

No caso dos eslavos, a "previsão" de Chico Xavier esbarra numa burrice óbvia. A atribuição de que os eslavos migrariam para o Nordeste brasileiro, hipótese inconcebível porque isso causaria um violento choque térmico, pois os eslavos vêm de regiões frias e o Nordeste é calorento demais para eles, é tão ridícula que Chico se esqueceu que, na época de seu nascimento, já havia migração de eslavos para o Brasil, mas não para o Nordeste, e sim para a Região Sul.

FALSO PROGRESSISTA

A imagem de falso progressista de Chico Xavier foi uma pegadinha montada para iludir as esquerdas e ateus, aumentando o "rebanho" para a FEB, em nome de suas intenções comerciais. Temos que nos lembrar que Chico Xavier, após a aposentadoria e depois a morte de Wantuil, teve que ser tutelado pela mídia hegemônica (Diários Associados e, depois e atualmente, as Organizações Globo), passou a ter uma atuação supostamente "independente" da FEB, tanto que passou a publicar seus livros por pequenas editoras.

Com isso, Chico Xavier podia ser "emancipado" de qualquer associação com o roustanguismo, associado à cúpula da FEB, o que possibilitou a tendenciosa e hipócrita inserção de sua pessoa entre os que "trabalhavam pela recuperação das bases doutrinárias", o que fez muitos acreditarem que o "médium" mineiro estava "aperfeiçoando seus conhecimentos da Doutrina Espírita" depois de "tanto entusiasmo" com suas origens católicas.

Isso é falso, como falso é o discurso todo montado para transformar Chico Xavier na pessoa adorada de hoje, enganando muita gente progressista, laica, ateia, muita gente admirável, incluindo católicos e evangélicos de esquerda, que engoliram todo aquele roteiro de Malcolm Muggeridge adaptado pelos noticiários da Rede Globo (Fantástico e Globo Repórter) que havia adotado em Chico Xavier a mesma propaganda ilusionista que "santificou" a reacionária farsante Madre Teresa de Calcutá.

Afinal, era uma propaganda que promovia um falso filantropo, conforme um roteiro específico e muito bem calculado. Criava-se um "produto" para idolatria religiosa, motivada pelo consumo das emoções e das paixões humanas, de maneira a associar o ídolo religioso a uma coleção de virtudes humanas, como se elas fossem privatizadas na pessoa do próprio objeto de adoração.

Com isso, os ídolos religiosos promovidos pelo método do reacionário Muggeridge eram associados a uma reputação "ecumênica": pretenso ativismo social, suposta caridade (Assistencialismo travestido de Assistência Social), pretensa pureza espiritual e falsa filosofia marcada por frases de efeito sobre moralismo e adnegação espiritual.

São paradigmas agradáveis, nos quais se permite que a fantasia prevaleça sobre a realidade, através da falácia dos "olhos do coração". Um discurso dócil e até piegas, que parece contos de fadas para gente grande, e que atribuem a reacionários religiosos, adeptos da Teologia do Sofrimento, que Madre Teresa e Chico Xavier sempre foram, a uma imagem falsamente progressista de pretensos pacifistas e humanistas.

Suas caridades nunca trouxeram resultados - no caso de Madre Teresa, perversidades foram posteriormente denunciadas por Christopher Hitchens e corroboradas por pesquisas universitárias - , sendo mais ações paliativas que diminuíram parcialmente a agonia dos mais pobres, sem que eles superassem plenamente sua inferioridade social e sem que a "filantropia" ameaçasse com os privilégios das elites.

Isso pouco importava. Bastava um discurso falacioso, combinando os ídolos religiosos a um cenário de pobreza, colocando, tendenciosamente, crianças sorridentes olhando para tais ídolos, e, pronto, cria-se uma imagem falsamente progressista, reforçada pelo apelo supostamente pacifista e tolerante, misturando conceitos de tolerância justa com subserviência aos opressores e abusadores de privilégios.

E também pouco importava se as frases de efeito revelavam valores conservadores, como aceitar o sofrimento extremo em silêncio, aguentar uma coleção de desgraças que esmagam a alma sob o pretexto de que um "outro mundo" trará "coisas melhores". A forma dócil com que se manipulava as palavras fazia com que até as esquerdas, que normalmente protestam contra a redução salarial, aceitem esse mesmo infortúnio quando a ideia é trazida por Chico Xavier.

PEGADINHAS "COMUNISTAS"

Em 2018, um texto foi publicado atribuindo a (fictícia) cidade espiritual de Nosso Lar como uma "sociedade comunista". A atribuição não tem pé nem cabeça e é sustentada por associações frouxas e ideias soltas, apesar da roupagem "monográfica" do texto, que inclui até referências bibliográficas para dar um tom "científico" a essa conversa para boi dormir.

O "esquerdismo" que se atribui a Chico Xavier é sustentado por ideias soltas, alegações de apelo fortemente emotivo e sofismas de frágil pertinência discursiva. São ideias ao mesmo tempo vagas e fantasiosas, mas que, acolhidas superficialmente, parecem "consistentes", mas isso é um artifício no qual ideias agradáveis, porém mentirosas, sejam manipuladas para parecerem "verdades indiscutíveis e imparciais".

O que vemos em Nosso Lar não é uma sociedade socialista ou comunista. É uma sociedade elitista, concebida como um grande condomínio de luxo. Dentro das elites, existe solidariedade e cumplicidade, tanto que a seletividade da Justiça sempre livra ricos e famosos de qualquer enrascada. Nos seus limites, os privilegiados são fraternos, solidários e respeitosos, mesmo em seus abusos, mesmo no seu conservadorismo social, mesmo nas licenciosidades morais e nos acordos diversos.

Chamar Nosso Lar de "sociedade comunista", talvez se contrapondo ao "Umbral" ("lixo capitalista"?) é criar uma analogia comparável à dos bairros cariocas de Barra da Tijuca e Cidade de Deus. A Barra da Tijuca (e, por associação, o Recreio dos Bandeirantes) seria, então, a "sociedade comunista", enquanto o "umbralino" bairro de Rio das Pedras seria um "lixo capitalista".

Isso não procede, porque atribuir "socialismo" aos condomínios prósperos e o "pesadelo capitalista" às favelas (versões terrenas do "umbral" imaginado pelos "espíritas") é inconsistente, porque cria-se uma inversão discursiva oculta na camuflagem discursiva de "espíritas" pretensiosamente "esquerdistas": a de que os ricos são "socialistas" e os pobres, o "resíduo capitalista".

Outra pegadinha é trazida pelo texto atribuído a Emmanuel, no texto publicado em Coletânea do Além, de 1945, que falsamente defende o comunismo "na sua forma mais correta". O texto, vale lembrar, foi publicado num contexto em que os EUA toleravam o comunismo e foi publicado antes da declaração da Guerra Fria. Não é um texto esquerdista e é bom tomar cuidado com argumentos que parecem favoráveis, mas não são. Vamos ao texto novamente, e depois as análises:

Como devemos encarar o comunismo cristão?

O comunismo em suas expressões de democracia cristã está ainda longe de ser integralmente compreendido como orientador de vossas forças político-administrativas.

Somente serão entendidas as suas concepções adiantadas, à luz dos exemplos do Cristo, quando reconhecerdes que o Evangelho não quer transformar os ricos em pobres e sim converter os indigentes em ricos do mundo, fazendo desabrochar em cada indivíduo a concepção dos seus deveres sagrados, em face dos problemas grandiosos da vida.

Comunismo ou socialismo cristão não pode ser a anarquia e a degradação que observais algumas vezes em seu nome, significando, acima de tudo, a elevação de todos, dentro da harmonia soberana e perfeita.

Quando o homem praticar a fraternidade, não como obrigação imposta pelas justas conveniências, mas como lei espontânea e divina do seu coração, reconhecendo-se apenas como usufrutuário do mundo em que vive, convertendo as bênçãos da natureza, que são as bênçãos de Deus, em pão para a boca e luz para o espírito, as forças políticas que dirigem os povos nortear-se-ão sem guerras e sem ambições, obedecendo aos códigos de solidariedade comum.

Semelhante estado de coisas, porém, nunca será imposto por armas ou decretos humanos. Representará o amadurecimento da consciência coletiva na compreensão dos legítimos deveres da fraternidade e somente surgirá, no mundo, por efeito do conhecimento e da educação de cada indivíduo".

Note que o texto diz "apoiar o comunismo" mas faz cobranças de cunho moralista-religioso que praticamente anulam o esquerdismo atribuído a tais parágrafos. O texto faz o tipo "a esquerda que a direita gostaria que fosse" e alegações como "fraternidade" e "educação" são vagos e superficiais, porque tais palavras também são respaldadas pela retórica da Escola Sem Partido.

A leitura apressada, infelizmente um vício muito comum até nas esquerdas, cria interpretações distorcidas, por conta da "pesca" de palavras soltas em um texto. E, lendo de forma corrida e irrefletida o texto de Emmanuel / Chico Xavier, se tem a ilusão de que tanto o jesuíta quando o "médium" são figuras de esquerda e que Emmanuel teria sido discípulo de Karl Marx.

Grande engano. Vendo outras obras de Emmanuel, se vê que seu autoritarismo segue padrões que hoje estão associados ao bolsonarismo. Era machista e, jocosamente, disse que "o melhor feminismo é realizado pela mulher no lar e na prece", e não "por uma ação contraproducente fora disso". E Emmanuel condenava o que mais se pratica na mídia de esquerda, que é reclamar e contestar.

Se contesta muito os abusos da mídia hegemônica e empresarial, se reclama dos comentários de gente como Nando Moura, Alexandre Frota e Olavo de Carvalho, se reclamou muito das atitudes dos políticos do PSDB - justamente o partido que Chico Xavier começava a sentir simpatia nos últimos anos de vida - e se contestou muitos ideais trazidos pela ideologia neoliberal e, recentemente, a ultraliberal.

As esquerdas questionam a mudança nos acordos trabalhistas que passaram a privilegiar o negociado sobre o legislado, baseado na ilusão de que patrões e empregados são "iguais" em privilégios. Mas as esquerdas ficam complacentes com Chico Xavier, que justamente seria o que mais defenderia essa alteração das leis trabalhistas, que jogaria a proteção legal aos trabalhadores no lixo, porque empregados e patrões "são irmãos" e o empresariado, coitado, precisa ter seu dinheiro a mais para presentear seus filhos com uma viagem para a Disney.

Ficamos imaginando se o espírito de Chico Xavier aparecesse para explicar, nas palavras dele, cada um dos valores do ultraliberalismo. Será que nossas esquerdas abririam mão de quase todo seu pensamento, porque o "iluminado médium" explicou tais valores ultraconservadores de maneira agradável?

Então, se for por esse apreço ao "canto de sereia" do "médium" mineiro, 75% de nossas esquerdas, se pegarem carona ao "pensamento iluminado" de Chico Xavier, teriam virado bolsonaristas convictos, manpulados pela retórica dócil do religioso, que com sua esperteza era capaz de forçar a aceitação de pautas retrógradas e reacionárias sob o pretexto da "abnegação espiritual", da "paz" e da "fraternidade". Com esquerdas adorando Chico Xavier, a direita dorme tranquila.

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