Dois textos do Cinegnose, por ironia, são um bom conselho para o semiólogo Wilson Roberto Vieira Ferreira, que é muitíssimo brilhante em suas análises sobre diversos assuntos, mas dá uma fraquejada quando o assunto é Francisco Cândido Xavier e seus delírios mistificadores, como a suposição de "cidades espirituais" (feitas ao arrepio da Ciência Espírita) e de "datas fixas para o futuro", prática condenada pela literatura espírita original.
O artigo "Rebaixamento dos padrões de inteligência da Revolução Industrial 4.0 criou Bolsonaro" é uma reflexão sobre a decadência cognitiva dos brasileiros, cita mecanismos como os algoritmos como recurso midiático para a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro, figuras ao mesmo tempo pitorescas e medíocres, que em condições normais nunca seriam eleitos presidentes da República. Até pouco tempo atrás, dizer que Trump presidiria o Brasil seria uma piada das mais ridículas.
Há fenômenos, descritos no texto, como a "direita alternativa" (alt-right), uma espécie de movimento no qual o antigo reacionarismo direitista, mesmo com seus conceitos medievais - nota-se que o imaginário bolsonarista tenta recuperar até a tese obsoleta da "Terra plana" - , ganha um verniz de "novo" e uma roupagem "rebelde" manifesta pelas grosserias cometidas pelos internautas sociopatas.
Há também menções ao fato de que o "debate político", dentro da confusão entre público e privado, se esvaziou e virou uma combinação de insultos e ofensas, protegidos pelo aparente anominato do sociopata de plantão. Há também a mania de dar argumentos absurdos, dentro de uma roupagem "lógica", não explicitamente citados por Wilson no texto, que expôs o caso em outras ocasiões.
Fala-se nos perigos de hackear a Democracia, através desses mecanismos de degradação da inteligência humana - sustentada por falácias, difundidas desde o tempo dos sociopatas do Orkut, como "Não preciso raciocinar porque nasci inteligente" ou "Para ser inteligente, não é preciso ter cérebro" - , na qual um delirante tresloucado como Olavo de Carvalho ganhou status de "filósofo".
O segundo texto é uma resenha de curta-metragem: "Curta da Semana: "Fake News Fairytale" - quando notícias falsas viram contos de fadas", relacionado ao filme mockumentary (paródia de documentário) intitulado Fake News Fairytale, no qual a cineasta Kate Stonehill, também jornalista, narra uma ocorrência surreal, mas verídica, que interferiu na vitória de Donald Trump na corrida presidencial dos EUA.
A ocorrência surreal consiste em um grupo de jovens da cidade de Veles, na Macedônia, que nos últimos anos desenvolviam páginas no Wordpress, com banners do Google Adsense para gerar renda, e passaram a publicar notícias falsas e relatos absurdos sobre políticos dos EUA, sobretudo do Partido Democrata, visando desqualificar a candidata à sucessão do presidente Barack Obama, do mesmo partido, a senadora Hillary Clinton, mulher do ex-presidente Bill Clinton.
Kate Stonehill simula um "documentário independente", com recursos modestos como câmera super-8, e começa usando a frase do candidato do Partido Republicano (mais conservador, enquanto o Democrata é progressista nos limites ideológicos dos EUA), "Isto não é um reality show. É a realidade", e a narrativa descreve o processo de produção de fake news como um "conto-de-fadas".
POR QUE NINGUÉM QUESTIONA CHICO XAVIER? MEDO?
Como é que os brasileiros fraquejam diante de qualquer questionamento em torno de Chico Xavier, cujo mito cresce como bola de neve e o transforma num "gigante Golias" da fé religiosa brasileira? Como é que o medo assombra até mesmo muitas páginas que tentam contestar e debater a deturpação espírita, quando chegam à necessidade de questionar a fundo Chico Xavier, param no meio do caminho?
As paixões religiosas surgem como um problema sério no qual as tentações humanas mais traiçoeiras dispensam o sexo, o dinheiro e as drogas para seduzirem as pessoas. São quebradas, de maneira bastante negativa, as barreiras entre o público e o privado nas redes sociais, mas também se vê, a partir das manifestações das seitas neopentecostais - que acolhem ícones da promiscuidade ou do crime como Alexandre Frota e Guilherme de Pádua - , a ruptura entre o profano e o religioso.
Mas é no "espiritismo" brasileiro que se encontram as armadilhas ainda mais profundas e ninguém se encoraja a contestar. Sobretudo diante de uma figura que nem tem atrativo algum, como Chico Xavier, mas que, como sedutor perigoso das pessoas, equivale a uma perigosa sereia que põe os navegantes a se afogarem no mar.
No caso de Chico Xavier, os "navegantes" não chegam a se "afogar", porque precisam viver longamente para lhe servirem de escravos emocionais. Quem se "afoga" são os filhos mais distintos, que são obrigados pelas circunstâncias a interromperem prematuramente suas encarnações, deixando seus planos de vida natimortos.
Mesmo havendo possibilidade de "vida futura", a morte prematura causa danos a esses espíritos. Uma pessoa leva, no mínimo, de três a dez anos para reencarnar, e, quando reencarnadas, as pessoas só conseguem ter uma consciência mínima da vida entre três e sete anos de idade.
Se uma pessoa morre aos 22 anos deixando um plano de vida no nascedouro, ao reencarnar dez anos depois, precisa alcançar no mínimo cinco anos de vida para ter o desenvolvimento físico e psicológico favoráveis a uma compreensão profunda da vida. Mesmo se adiantar seu "nível universitário" de compreensão da vida dos 22 aos 11 anos de idade, já se perderam 21 anos e as condições para retomar o trabalho perdido já estarão sensivelmente comprometidas. E, no contexto da Terra, a limitação da maioridade etária para 18 anos impõe certas limitações.
Chico Xavier, nos seus aspectos negativos, oferece um amálgama de sérios problemas semiológicos. Só para citar os problemas ignorados por Wilson Roberto, as "cidades espirituais" refletem a ideia do "outro mundo" onde, simbolicamente, se deposita a ilusão de "uma vida melhor" que não encontra possibilidade, no discurso chiquista, na vida presente.
"Mundo espiritual" e "reencarnação", como simbologias da "vida melhor" na Teologia do Sofrimento de Chico Xavier, seriam, na verdade, "mecanismos de fuga" que obrigam, sob uma ótica religiosa conservadora, a pessoa a se conformar com o sofrimento. Não há um aspecto na ideologia de Chico Xavier que possa justificar a falsa imagem de "progressista" a ele atribuída assim de graça, sem motivo.
Aliás, as posturas de Chico Xavier associadas ao "comunismo" - ver Coletânea do Além, de 1945 - e homossexualismo (causa LGBTT) - ver Vida e Sexo, de 1970 - requer também análise semiológica, na qual um discurso falsamente favorável a essas causas, se apoiando em ideias vagas ou abstratas, que escondem posturas sombrias de profunda aversão às mesmas.
No caso do "comunismo", a mensagem, atribuída a Emmanuel (mas muitas fontes garantem vir da mente do próprio Chico), estabelece mais cobranças do que apoio, atribuindo ao "comunismo autêntico" aquele que se apoiar na "fraternidade" e na "educação". Devemos desconfiar dessas ideias, que parecem ser "genuinamente esquerdistas".
Afinal, numa análise semiológica e com base em outras declarações, mais reacionárias, atribuídas a Emmanuel (como o "tóxico do intelectualismo", concepção depreciativa do senso crítico quando este desafia o obscurantismo da fé), nota-se que "fraternidade" segue paradigmas do Catolicismo medieval, envolvendo processos rígidos de hierarquia social e conceitos morais conservadores que envolvem relações de subserviência humana dos não-privilegiados.
No caso da "educação", que faz com que Chico Xavier seja festejado como um falso defensor de pedagogias libertárias, seus valores são claramente idênticos ao hoje conhecido projeto da Escola Sem Partido. Isso é explícito. Chico Xavier defendia uma educação que "apenas ensinasse" a ler, escrever, trabalhar e ter religião, sem debater a realidade (prática desaconselhada pelo "médium", temente a "dissabores"). Isso é, abertamente, a defesa da Escola Sem Partido.
A "profecia da data-limite", trazida pelo colaborador Nelson Job nesta postagem, não bastasse ser uma afronta aos ensinamentos originais do Espiritismo - Allan Kardec condenava a prática de prever o futuro determinando datas fixas, por ser uma ação própria de espíritos enganadores - , ela também pode ser conhecida como um sério e grave problema semiológico.
Primeiro, pela atribuição de que extraterrestres serão vistos como "salvação da humanidade" na Terra. A "salvação externa", que revela a incapacidade de "alto-salvação" das pessoas, o que pode ser confrontado, na agenda noticiosa recente, pela convocação de forças israelenses para atuar em tarefas simples de busca por vítimas e rastreamento de áreas destruídas pelo lamaçal derramado pela queda de uma barragem em Brumadinho. Que oportunidade semiológica Nelson Job perdeu.
CONTO-DE-FADAS
No caso de Fake News Fairytale, há subsídios que podem contribuir para questionar o mito de Chico Xavier. Suas "psicografias" mostram indícios de conteúdo fake, por apresentarem - problema que tem provas consistentes em muitos casos - sérias irregularidades em torno de aspectos pessoais associados a supostos autores espirituais. Problemas de estilos pessoais, de caligrafias nas assinaturas, de expressão de pontos de vistas, todos esses problemas trazem indícios de que Chico Xavier NÃO FEZ psicografia, por ela apresentar fortes indícios de obras fake.
Mas isso é deixado sob o tapete, porque uma narrativa própria de um conto-de-fadas passou a promover Chico Xavier, deixando de lado aspectos pitorescos. A fórmula foi adotada pela Rede Globo - é só ver os especiais do Globo Repórter sobre Chico Xavier ou "mediunidade" e algumas matérias do Fantástico sobre estes temas - , a partir do final dos anos 1970, sob inspiração do que o inglês Malcolm Muggeridge fez para promover Madre Teresa de Calcutá.
Chico Xavier passou a ser visto, através do "método Muggeridge" (Muggeridge foi uma espécie de "Steve Bannon" da religião, um "fabricante de santos"), como uma espécie de "fada-madrinha do mundo real", com um pacote de "virtudes" feitas para o consumo emocional das paixões religiosas: pretensa filantropia (Assistencialismo de baixos resultados sociais e praticado não pelo "benfeitor", mas pelos seguidores), suposta sabedoria e pretensos apelos de "beleza e simplicidade".
Foi um mecanismo usado tanto para abafar as tensões populares num período de crise da ditadura militar, fazer frente às igrejas neopentecostais (antes rivais dos "espíritas", hoje discretos aliados em pautas afins) e barrar a ascensão de verdadeiros ativistas sociais. Para desespero dos que colocam o ex-presidente Lula e Chico Xavier num mesmo patamar, é bom lembrar que os dois sempre foram antagônicos e o "médium" era usado para desviar a adoração que seria para o então líder sindical.
Esquecemos também que Chico Xavier tinha uma reputação, antes dessa campanha, comparável à que Olavo de Carvalho, um lunático escritor e pregador reacionário, tem nos tempos atuais. Se bem que o "filantropo" da vez, numa espécie de atualização pop do "método Muggeridge", é o "independente" Luciano Huck, que decidiu apenas dar um "apoio crítico" ao governo de Jair Bolsonaro, discípulo de Olavo.
Huck, empresário e apresentador de TV, integrante de uma elite empresarial que se ascendeu durante o governo Fernando Henrique Cardoso, virou um dublê de filantropo nos mesmos moldes que foram trabalhados para Chico Xavier desde que ele começou a atuar em Uberaba, nos anos 1950 (o "médium" ainda morava em Pedro Leopoldo, de onde saiu em 1959). Não por acaso, Huck realizou uma edição do quadro Lata Velha, do Caldeirão do Huck, em Pedro Leopoldo, terra natal do "médium".
Esse discurso envolve problemas semiológicos muito grandes. O "filantropo" que quer aparecer acima dos mais necessitados. Uma "caridade" que se torna espetáculo de entretenimento, tanto que a história da televisão mostra tantos exemplos, incluindo muitos charlatães depois desmascarados. Nesse espetáculo os mais necessitados, os pobres, doentes e desamparados, são apenas coadjuvantes, o "benfeitor" é que obtém o protagonismo e os resultados sociais são bem medíocres.
Há apelos emocionais que estão em jogo. E isso faz com que a "caridade" seja mais adorada do que compreendida. Isso é ótimo para processos de corrupção que usam a "caridade" para obter superfaturamento ou desviar donativos para atividades comerciais.
A ênfase nos apelos emocionais deve ser questionada. Paciência, somos seres racionais. E aí temos, através da pós-verdade religiosa, como na adoração a Chico Xavier, outro problema semiológico ou semiótico, que é o "rebaixamento" simbólico dos "instrumentos de raciocínio", que saem do topo do corpo humano - o cérebro, localizado na cabeça - , para se tornarem o "coração". Até uma peça recente sobre Chico Xavier tinha como lema que "é preciso ouvir o coração".
Isso já é uma afronta à ciência e, por conseguinte, aos ensinamentos da Doutrina Espírita. Usar o "coração" como "instrumento do verdadeiro (sic) raciocínio" é uma leviandade que só faz sentido na linguagem poética, mas nunca deve ser levada a sério no que se refere ao âmbito do Conhecimento.
E isso abriu o caminho para mais abaixo, quando o discurso do ódio, um subproduto dos impasses das paixões religiosas, passa a ir mais baixo para atribuir um "novo instrumento de raciocínio humano", o fígado, ideia simbólica muito difundida em tempos de bolsonarismo.
Mas há também a questão da inteligência artificial e das redes sociais. Como as redes sociais se tornaram o maior reduto de endeusamento de Chico Xavier, cultuado até por pessoas que, fora desses momentos de devoção fanática, são capazes de defender pautas como a liberação do porte de armas aos cidadãos comuns.
Por ironia, a inteligência artificial, incapaz de estabelecer diferenças estilísticas entre uma obra autêntica ou fake, pelo menos em condições naturais como no raciocínio humano (pelo cérebro, vale lembrar), viu cabelo em ovo ao "confirmar" (sic) supostas diferenças entre obras de Chico Xavier usando os nomes de Humberto de Campos, Emmanuel e André Luiz.
No reduto de fakes, tem-se até "médium" supostamente recebendo "espíritos" de cientistas estrangeiros "fluentemente falando português" e em linguagem de youtuber, como os "cientistas de estimação" do psicanalista carioca Adriano Correia, bastante festejados no mesmo Facebook e no mesmo WhatsApp dos bombardeios de fake news. É uma arena digital na qual Chico Xavier e Olavo de Carvalho são tratados como se fossem "filósofos", fazendo a festa da burrice reinante.
Chico Xavier teve várias oportunidades para ser desmascarado: o processo do caso Humberto de Campos (1944), as denúncias de Amauri Xavier (1958), o caso Otília Diogo (1963-1970), as denúncias de exploração econômica das "psicografias" (1969), o reacionarismo explícito no programa Pinga Fogo (1971) e o apoio para um projeto de tradução roustanguista da obra de Kardec (1973).
Alguém em sã consciência acha que, com tantos escândalos como estes, será possível atribuir a imagem de vítima a Chico Xavier? Se esses escândalos ocorreram, foi por iniciativa dele, que consentiu com muitas barbaridades das quais tentava tirar o corpo fora.
E são escândalos muito graves para que se possa desenhar uma imagem adocicada de Chico Xavier, embalando-o para o consumo deslumbrado de seus fanáticos seguidores ou mesmo de simpatizantes "menos sectários". Um discurso de santificação construído e que merece muitos questionamentos semiológicos, se não fosse o caso de que, no Brasil marcado pela burrice, até intelectuais sofrem a tentação de se renderem aos perigos das paixões religiosas.
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