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O "espiritismo" brasileiro virou uma grande farra. Afastado das lições originais do Espiritismo francês, a religião brasileira se rebaixou a uma doutrina de adoração aos "médiuns" (mais para sacerdotes do que para videntes propriamente ditos), uma repaginação doutrinária do Catolicismo medieval e um mercado de literatura de louvor aos "médiuns" ou de produção "psicográfica" que se revela fake, com provas consistentes.
Cria-se uma multitude de "mortos da moda", que nunca escreveram uma vírgula que se atribui a eles, dentro das paixões religiosas da Terra, que, no entanto, legitimam tais obras por conta de frivolidades como "desejar a paz em Cristo", mesmo quando há disparidades de estilo e outros aspectos pessoais.
O caso de Humberto de Campos foi o exemplo mais aberrante e gerou processo judicial. Mas a seletividade da Justiça deu impunidade a Francisco Cândido Xavier que, ao ver o caminho liberado - desde que o "médium" inventasse um nome para o suposto espírito, daí o codinome "Irmão X" - , ainda cometeu assédio moral ao filho homônimo do escritor, atraindo ele para um evento que incluiu "doutrinária" (a "missa" dos "espíritas") e um show de mero Assistencialismo, em 1957.
Com isso, o caminho foi liberado de tal forma que o "bom exemplo" de Chico Xavier provocou uma grande farra das pretensas mediunidades, com supostos "médiuns" virando verdadeiros "donos dos mortos". Afinal, Chico já foi "dono" de alguns, como Humberto de Campos e a anônima professora, prematuramente falecida, Irma de Castro Rocha, a Meimei. E tinha morto usurpado de todo tipo, de Getúlio Vargas a Renato Russo, de José do Patrocínio a Daniella Perez, de Hannah Arendt a Domingos Montagner.
Toda essa farra era feita ao arrepio da Ciência Espírita. O suposto médium se reunia num quarto secreto, imaginava o morto de sua escolha, colhia informações de jornais, revistas ou "leitura fria", no caso de não-famosos - depoimentos de pessoas consultadas no "auxílio fraterno", no qual se colhia até o número do telefone do formulário, truque certeiro para impressionar o público - , e daí se passava por ele e produzia uma mensagem de propaganda religiosa, para evitar desconfianças, pois ninguém teria coragem de contestar mensagens pedindo a "paz em Cristo".
Recentemente, mais um famoso ilustre morreu. O jornalista Ricardo Boechat, em 11 de fevereiro de 2019, chocou a todos com sua tragédia. Na manhã do mesmo dia, ele estava ao vivo, na Band News FM, fazendo seu habitual noticiário, o Café Com Jornal, além de inserções em afiliadas interagindo com seus apresentadores locais. Em seguida, ele saiu para viajar para Campinas, para uma rápida palestra de 40 minutos num evento promovido pela farmacêutica Libbs.
A tragédia repentina aconteceu quando um helicóptero de uma empresa que, mesmo credenciada pela ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), não tinha autorização para fazer táxi aéreo, cometeu uma imprudência, com o piloto despreparado tentando um pouso de emergência, ao perceber uma pane na aeronave.
O veículo aéreo cometeu o erro de tentar um pouso próximo a um viaduto na Rodovia Anhanguera, em São Paulo e, caindo em plena rodovia, se chocou com um caminhão e pegou fogo. O piloto e o jornalista morreram na hora. O caminhoneiro envolvido no acidente foi salvo por uma jovem.
A morte de Ricardo Boechat causou um choque tão grande que muita gente não acreditou. Até os profissionais do Grupo Bandeirantes ficaram desnorteados ao receberem as primeiras informações, como numa reação natural com um colega com o qual acabaram de conviver em poucos instantes anteriores. Daí que eles se comoveram tanto com a perda do amigo e carismático jornalista que passaram a trabalhar o Jornal da Band tendo como principal matéria essa tragédia muito triste.
COMOÇÃO PÚBLICA E OPORTUNISMO "ESPÍRITA"
A comoção pública em torno de Ricardo Boechat traz o habitual perigo que envolve falecidos ilustres no Brasil. É o risco de algum suposto médium embarcar nessa comoção e forjar uma mensagem "mediúnica" que não passa de mera propaganda religiosa.
Essa mensagem segue o mesmo roteiro de Nosso Lar, a fictícia colônia espiritual inventada por Chico Xavier e seus parceiros na Terra. É aquele papo do morto se sentir atormentado pela tragédia, ser socorrido para uma "colônia espiritual", "aprender" os "ensinamentos do Cristo" e dizer para as pessoas da Terra desenvolverem uma "fraternidade cristã", que é o tal mershandising religioso.
Tendo Ricardo Boechat sido um ateu, os "espíritas" saem em polvorosa. A relação dos "espíritas" com os ateus se equipara a das raposas com as galinhas. Os "espíritas" adoram cooptar um ateu, que consideram "virgem de Deus". Os ateus mais trouxas acham que o "espiritismo" brasileiro está no lado deles, mas os "espíritas", na verdade, combatem o ateísmo, dentro daquela relação do Catolicismo medieval com os hereges, ou seja, pelo proselitismo religioso a converter ateus.
Existe até um famoso episódio em que Chico Xavier, a raposa que mais visitou o galinheiro no Brasil, tenta parecer gentil com um ateu. Consta-se que alguém veio ver Chico Xavier e ele perguntou: "Você acredita em Deus?". O interlocutor respondeu que não acreditava em Deus. Daí Chico disse: "Não faz mal. Deus acredita em você". Mais um daqueles trocadilhos associados ao mito do "médium".
O Jornal da Band já publicou uma série sobre "mediunidade". A Band é uma das empresas que, corroborando a abordagem montada pela Rede Globo para blindar Chico Xavier, foram usadas para dar um tom "independente" para tal abordagem, para dar a impressão de que o "médium" estava acima de qualquer mídia (olha o trocadilho).
Mas não. Até porque o poder midiático, como um todo, corteja Chico Xavier dentro do prisma das elites conservadoras, que o fazem um paradigma de "ativismo" e "pacifismo" que evita a projeção dos verdadeiros ativistas e pacifistas. E isso a ponto da mídia esquerdista morder a isca e pegar carona no endeusamento a esse arauto do ultraconservadorismo moral e religioso.
Pois aí temos o risco de, em torno de dois meses, surgir uma mensagem de um falso Ricardo Boechat dizendo que "repensou seu ateísmo diante da realidade do mundo espiritual". O suposto médium pode se lembrar dos comentários que ouviu de Ricardo na Band News e imitar, com surpreendente perfeição, a sua linguagem.
Uma farta fonte de jornais, revistas e páginas da Internet estará disponível para o pretenso médium montar o "seu" Ricardo Boechat e, dependendo do tom da mensagem, ela poderá enganar até mesmo seus familiares e amigos, se o "médium" aproveitar a fartura de informações e construir uma suposta psicografia verossímil. Infelizmente, falsas psicografias podem enganar familiares pela simples carga emocional que elas tiverem, no caso dela ser forte e se sustentar por um aparato convincente.
Humberto de Campos foi usurpado por Chico Xavier por uma estratégia bem menos convincente. Até o escritor que começou acreditando nas psicografakes de Chico Xavier que levavam o nome do autor maranhense, Agrippino Grieco, depois se arrependeu, envergonhado pela crendice inicial.
Mas há casos de mensagens que enganam muito. A mensagem atribuída ao falecido filho da atriz Márcia Brito, a Brita Brazil - ex-modelo fotográfico que, depois, foi conhecida como a Flora Própolis da Escolinha do Professor Raimundo - , conseguiu enganar a mãe pelo simples fato do texto mencionar dados do CPF e do celular da atriz que ela havia inscrito no formulário para o "auxílio fraterno". Ela foi iludida pela "leitura fria" do "médium" e ainda o defendeu pela suposta "caridade" de sua "casa espírita".
O que será de uma "nova mensagem" do "espírito Ricardo Boechat"? O grande perigo é que um "médium" mais esperto, dotado de carteirada religiosa, monte uma mensagem bem sofisticada, cheia de informações "difíceis" e dotada de uma forte carga emocional. Será que essa fraude enganará os familiares? Ou será que provocará sensacionalismo e polêmicas baratas? José Luiz Datena terá coragem de publicar essa mensagem atribuída ao seu amigo?
São temores que se têm num país onde o assunto da paranormalidade, assim como outros fenômenos de natureza espírita, não são devidamente estudados. Há muito blablablá teórico, que esbanja muito pedantismo e mentiras, que só serve para confundir as pessoas com a pseudo-ciência, trazida a partir dos livros "científicos" de Chico Xavier sob o crédito de André Luiz e plagiados de livros conhecidos da época.
Além disso, lembremos das lições de Allan Kardec, quando alertava pelo perigo do uso de nomes ilustres para forçar a mistificação religiosa. Isso se torna um meio muito perigoso de influenciar as pessoas, porque desenvolve apelos emotivos muito fortes que podem deixar os menos preparados bastante vulneráveis.
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