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Episódios como o anúncio de renúncia do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gustavo Bebianno, um dos maiores apoiadores da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, o apoio de Valesca Popozuda ao amigo maquiador e bolsonarista, a caricata "agenda identitária" do reacionarismo de resultados da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e o "ativismo" paternalista de Luciano Huck, têm um ponto em comum.
É o desnorteamento e a complexificação do cenário conservador em que vivemos, diante de contextos que não conseguimos identificar ou, quando identificamos, não há como vê-los da maneira simplória e binária que antes se via. E as esquerdas andaram se iludindo muito ao encampar pautas, causas e totens que, na verdade, são itens estratégicos dos mecanismos conservadores de dominação social.
Baseada numa perspectiva binária em relação às pautas identitárias e seu aparato sócio-econômico, as esquerdas erraram por exaltar "heróis" que correspondem ao imaginário conservador brasileiro. Pior: seus "heróis" foram assimilados quando essas esquerdas, no passado, os conheceram através da mídia nada progressista, como o SBT, a Rede Globo e a Folha de São Paulo.
A idolatria a Francisco Cândido Xavier é ilustrativa, assim como a do "funk". O falso apelo de pobreza, digamos, o "falso aroma de pobre" forjado pela mídia hegemônica deixou as esquerdas entorpecidas e o discurso exageradamente emocional fez os esquerdistas se iludirem achando que nesses fenômenos haveria a chave de uma nova sociedade socialista no Brasil.
Estavam enganados. Chico Xavier e o "funk" pertencem, na verdade, a um imaginário cruelmente conservador e relacionado a formas paternalistas de tratamento da pobreza e meios conservadores de encarar o povo pobre, que nem de longe correspondem a pautas progressistas, muito pelo contrário. Chico Xavier sempre foi reacionário em toda sua vida e o "funk", além de glamourizar a pobreza, difunde valores retrógrados como o machismo e o anti-intelectualismo, travestidos de aparatos opostos.
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Mesmo as esquerdas semióticas ou analíticas em geral, capazes de questionar até quando um esquerdista aparece acariciando um tucano (a ave), trazendo desconfianças de que a pessoa que age assim estaria "se vendendo para o status quo político", não conseguem entender por que Chico Xavier foi retrógrado em toda sua vida e por que as mulheres-objetos do "funk" simbolizam o machismo e não o feminismo.
Atualmente, episódios como a anunciada renúncia - não consumada até a edição deste texto - de Gustavo Bebianno, braço-direito de Jair Bolsonaro que mais apoiou sua campanha eleitoral, poderiam deixar as esquerdas ingenuamente chiquistas em polvorosa, tentando comemorar que o fato de Bebianno admirar Chico Xavier "teria influído" no conflito entre ele e o presidente. Devem achar, os chiquistas, que Bebianno não só romperá com o governo como irá se filiar ao Partido dos Trabalhadores.
Nada disso. Até porque Chico Xavier, simbolicamente, permanece no governo Jair Bolsonaro, pela afinidade de sintonias. Ambos, Chico e Jair, tiveram trajetória arrivista, se ascendendo de forma desonesta - literatura fake e plano terrorista, respectivamente - e favorecidos pelas conveniências do momento.
Além disso, a pauta de Chico Xavier, embora não aprove a violência e o armamento, tem itens perfeitamente bolsonaristas, que se encaixam em valores trazidos pela "reforma trabalhista", "reforma previdenciária" e até pelo movimento Escola Sem Partido. Além disso, Chico Xavier era apoiador da "cura gay", porque, embora pedisse "total respeito aos homossexuais", ele definiu o homossexualismo como fenômeno de "confusão mental" dos encarnados.
O "funk" também faz apologia da pobreza, da ignorância e de valores retrógrados como o machismo. Ele também sugere um racismo contra os negros, forçando o vínculo da ideia de negritude ao ritmo. No que se diz aos intérpretes, eles estabelecem relações com seus empresários que mostram aspectos análogos aos da "reforma trabalhista" como a pejotização. Esses ídolos até faturam muito nos shows, mas seu trabalho apresenta aspectos de precarização das normas trabalhistas.
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As esquerdas se calam diante de tantas irregularidades envolvendo "médiuns" e funkeiros. Fala-se que o goiano João de Deus só cometeu assédio sexual, mas se esquecem que ele praticava charlatanismo a ponto de não recorrer a si mesmo para retirar um câncer do seu corpo, recorrendo a um hospital de renome para tal finalidade.
E a Mulher Melão, um dos ícones do "funk", apoiando a Operação Lava Jato, comandada pelo hoje ministro da Justiça, Sérgio Moro, que propõe um projeto "anti-crime" que se voltará contra a população pobre? Há poucos dias, um segurança de um supermercado na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, enforcou um jovem trabalhador e, baseado na malandragem das brechas de Moro, alegou "legítima defesa", revoltando (com razão) a nossa sociedade.
As esquerdas se calam e se calam muito. Perderam o protagonismo político por suas omissões, e elegeram como "heróis" pessoas do campo oposto, como ovelhas que imaginam que, quando dois lobos brigam, um deles está do lado do rebanho ovino.
Recentemente, as esquerdas começam a criticar a ênfase exagerada nas pautas identitárias através do reacionarismo de Damares Alves, que de tão caricatural parece personagem de A Praça é Nossa. A ideia de que meninos devem vestir azul e meninas, rosa, desviou o debate para assuntos sérios, como a precarização do trabalho e a extinção das aposentadorias (as classes trabalhadoras dificilmente chegam vivas aos 62, 65 anos, para receber seus vencimentos).
Esquecem que essas mesmas esquerdas aceitaram de bom grado quando o "funk" invadiu a mídia de esquerda para desviar o foco dos debates sérios, lembrando o que, nos anos 1960, um personagem chamado Cabo Anselmo havia feito durante o governo de João Goulart, forjando um suposto vitimismo "identitário" para desviar o debate sobre temas como educação pública e reforma agrária?
As esquerdas também estão criticando o "ativismo" e a "filantropia" espetacularizados de Luciano Huck (que apoiou com gosto os funkeiros), a ponto de não confiarem no seu discurso de "consciência social". Veem com desconfiança os quatros "assistenciais" do Caldeirão do Huck, da Rede Globo, achando que é pura encenação e os resultados trazidos, quando muito, são pontuais e não trazem a necessária transformação social que a verdadeira caridade deveria trazer.
Mas as esquerdas se esquecem que, no quesito "filantropia", Chico Xavier antecipou Luciano Huck no seu simulacro de caridade. Tanto Chico quanto Luciano (admirador confesso do "médium", a ponto de gravar o Caldeirão, certa vez, em Pedro Leopoldo) não fizeram caridade, em si, mas se promovem às custas de terceiros, pedindo para que seu público contribuísse com donativos e criando um faz-de-conta de altruísmo com baixíssimos resultados sociais.
É uma "caridade" que, chamada de Assistencialismo, não contribui para eliminar a pobreza, mas apenas diminuir seus efeitos drásticos. Isso em si não há problema, se as limitações justificassem, mas a grandeza com que se supõe ter Chico Xavier era para ter a responsabilidade de fazer algo mais, mas o "médium" nunca cobrou das elites que fizessem mais pelos pobres e nem ele era capaz de doar um fio de sua peruca para os mais necessitados.
E Chico Xavier não era pobre. Ele apenas não mexia em dinheiro, porque tinha a seu serviço assessores, assistentes etc, como um popstar da religião. E seu passado arrivista, fazendo "psicografias" fake e apoiando fraudes de materialização, além de sempre expressar, em livros e depoimentos, opiniões reacionárias, foi dissimulado pelo aparato da suposta filantropia, de forma a transformá-lo num semi-deus, num falso cristo, assim, de graça.
As esquerdas deveriam ao menos terem autocrítica, porque suas posturas fizeram com que elas perdessem o poder em suas mãos. Acolhendo resíduos do moralismo e paternalismo direitistas vigentes na ditadura militar - que produziram mitos como Chico Xavier e criaram condições sócio-culturais para o "funk" - , as esquerdas caíram na armadilha e permitiram que, por etapas, Jair Bolsonaro chegasse ao poder.
Pelo jeito as "bombas semióticas" do "falso aroma de pobreza" explodiram nas mãos dos esquerdistas que assistem, pasmos, ao triste espetáculo da extrema-direita no poder.
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