"ESPIRITISMO" É A RELIGIÃO BRASILEIRA QUE, SOB O PRETEXTO DA "VIDA FUTURA", DEFENDE A CONFORMAÇÃO COM O SOFRIMENTO HUMANO.
Observemos. O "médium" Francisco Cândido Xavier, popularmente conhecido como Chico Xavier, pregava o tempo todo que a pessoa aguentasse sofrer desgraças e infortúnios em silêncio, sem reclamar, sob o pretexto de que o socorro de Deus, ainda que demorasse ou fosse até póstumo, era "uma certeza". Nos "centros espíritas", os membros do auxílio fraterno, ao serem informado do sofrimento de seus clientes, lhes dizem que "está tudo bem" e basta só "confiar e rezar para Deus".
Muitos não percebem, não entendem e se recusam, até com agressiva teimosia, a realidade de que o "espiritismo" brasileiro, além de distanciado do original francês - apesar de toda a gosmenta bajulação a Allan Kardec - , é uma das religiões mais conservadoras do país, concorrendo, de igual a igual, com as seitas evangélicas de tendência neopentecostal, como a Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus e Assembleia de Deus, entre outras.
Diferindo apenas das seitas neopentecostais pela embalagem agradável e modesta que apresenta - e que consegue esconder um conteúdo surpreendentemente medieval - , o "espiritismo" brasileiro também foi a religião mais favorecida pela ditadura militar. A revelação é chocante, mas historicamente comprovada.
A Federação "Espírita" Brasileira cresceu vertiginosamente na década de 1970 e essa é exatamente a década em que se viu o auge da trajetória de Chico Xavier. Ele mesmo um sujeito reacionário, um reacionário convicto conforme ele próprio mostrou, com suas palavras, no Pinga Fogo da TV Tupi, não mediu argumentos para expressar defesa entusiasmada da ditadura militar. Segundo Chico Xavier, com suas palavras, a ditadura militar estava fazendo do Brasil um "reino do amor".
O "espiritismo" brasileiro cresceu como religião durante a ditadura militar. Antes, sua atuação era mais privativa e, fora do restrito público de "iniciados", o "espiritismo" brasileiro era visto apenas como uma religião exótica que se voltava ao sobrenatural. A imagem de religião igrejeira, de uma espécie de clone mais conservador do Catolicismo, foi desenvolvida na década de 1970.
A mídia solidária à ditadura militar havia errado quando promoveu o mito do "médium" Zé Arigó, que recebia o espírito do médico alemão Dr. Fritz, A ênfase no "médium" era mais sobrenatural e sensacionalista, o que despertou desconfianças de charlatanismo. Em certo sentido, a morte por acidente de carro, que muitos supõem ser uma maldição, foi um alívio para quem queria que o "espiritismo" brasileiro fosse visto de maneira menos exótica.
Na mesma época da morte de Zé Arigó, o "espiritismo" brasileiro tinha que blindar Chico Xavier, recém-desmascarado ao lado de Otília Diogo no episódio das falsas materializações. Como a sociedade não tinha tanto acesso às informações como hoje, já que a censura era bem explícita, o "espiritismo" pôde inventar que Chico Xavier foi enganado por Otília. Até as fotos que provaram que Chico não foi enganado e sabia de tudo, tiradas por Nedyr Mendes da Rocha, só foram divulgadas tempos depois.
A imagem do "bondoso Chico Xavier" pegou porque se iniciava, ainda que timidamente, uma construção marqueteira de uma imagem "mais agradável" do anti-médium mineiro. Essa imagem consistia em forjar um pretenso filantropo, um suposto profeta, um falso filósofo, um impensável colecionador de virtudes humanas, feito para ser adorado, aos níveis de um velocino de ouro, por uma legião de fanáticos.
Um sujeito que, pouco tempo atrás, não media escrúpulos para assinar atestados "legitimando" práticas farsantes de pretensa materialização - em que modelos cobertos de lençol recebiam, na altura da cabeça, fotos mimeografadas dos respectivos mortos, coladas em cima; ou então pessoas tinham gazes e algodões coladas na boca aberta para fingir "formação de ectoplasma" - , de repente, virou algo perto de um semi-deus.
Acabamos nos acostumando em ver o Chico Xavier como uma figura melíflua, cercada de flores e coraçõezinhos, crianças brincando e sob um cenário de céu azul, a ponto de muitos idiotas colocarem a palavra "Amor" como seu sobrenome do meio. Mas isso apenas fez esconder tantos aspectos macabros de sua trajetória.
Chico foi um arrivista, se promoveu com um estranho livro "psicográfico" que sinistramente "reuniu" vários profetas em obras confirmadamente fake, que não estavam à altura do que os autores mortos alegados produziram em vida. E o livro, como se não bastasse, sofreu alterações bruscas de conteúdo, cinco vezes e em quase 25 anos.
Isso em si já traz uma desconfiança enorme. Mas os malabarismos do discurso, seja os instintos pré-Steve Bannon de Antônio Wantuil de Freitas, presidente da FEB e misto de empresário e marqueteiro de Chico Xavier, seja a blindagem feita na era pós-Wantuil com a parceria dos Diários Associados e das Organizações Globo, fizeram com que Chico Xavier fosse promovido a um tipo de "fada-madrinha" feita para pessoas mais velhas no mundo real.
Com o "médium", criou-se um mundo de cor, sonho e fantasia, mas que tinham que possuir um terreno no qual se impõem à realidade dos fatos. Um terreno onde o pensamento desejoso - sob o eufemismo "ainda mais agradável" dos "olhos do coração" - se impõe até mesmo ao senso crítico, promovendo uma verdadeira mancenilheira de percepções, emoções e sensações, criando em Chico Xavier a única pessoa na qual a fantasia estabelece supremacia absoluta à realidade.
E isso foi certeiro na ditadura militar, porque Chico Xavier virou a água-com-açúcar personificada. E era isso que fez o "médium" virar um sustentáculo para o poder dos militares, que Chico mesmo apoiou com gosto até o fim. Através de Chico Xavier, tentou-se neutralizar a ascensão de Lula, então sindicalista, e criou-se uma concorrência "mais ecumênica" aos pastores evangélicos eletrônicos.
Oficialmente, muitos imaginam que as duas religiões mais favorecidas pela ditadura militar foram o Catolicismo e as religiões evangélicas neopentecostais, derivadas da Igreja Nova Vida e das origens da Assembleia de Deus. Engano. O Catolicismo estava apenas institucionalizado, enquanto as seitas neopentecostais estavam emergindo. Portanto, nem uma nem outras foram as mais favorecidas pela ditadura militar. Mas o "espiritismo", com sua falsa fama de "progressista", sim.
O "espiritismo" tem um discurso que agradou a ditadura militar e agrada o reboot ditatorial do governo de Jair Bolsonaro. A ideia de sofrer em silêncio, sem reclamar, aceitando desgraças e tragédias, porque "no outro lado" a vida "será bem melhor" é certeiro. Não se precisa dizer "Brasil: Ame-o ou Deixe-o", porque os infortúnios já expulsam, pela morte, os desafortunados da sorte, que vão rumo ao "desconhecido" como se estivessem indo a um "paraíso" cuja existência é duvidosa.
Foi a partir da ditadura militar que o "espiritismo" deixou oficialmente de ser visto como um mero "acampamento" místico-esotérico, para se tornar uma "igreja" tida como "mais interessante" que a Católica. Um "catolicismo" de chinelos, sem as formalidades do Catolicismo original e com um conteúdo conservador que agrada aos mais velhos e, sob o consolo da "vida futura", força os jovens a aceitar esse conservadorismo sob uma teia de argumentos falaciosos, porém verossímeis e persuasivos.
E a narrativa marqueteira da grande mídia, sobretudo a Rede Globo, capaz de impor seus valores como se fossem "tão naturais quanto o ar que respiramos", fez também que o "espiritismo" brasileiro, em que pese seu conteúdo medieval, fosse aceito até por esquerdistas e ateus, que, tolamente, se deixam levar pelo aparato de simplicidade e pelo falso progressismo dessa religião que se afastou dos postulados franceses originais.
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