Assim como Francisco Cândido Xavier, conhecido como Chico Xavier, representa um telecatch ideológico com Jair Bolsonaro, forjando um falso contraste através das palavras "amor" e "ódio", o "médium", comparado com o "funk", também forjam um telecatch através da aparente contradição moral, pela suposta dicotomia da "vulgaridade" funkeira diante da "luminosidade" do "médium".
Só que, neste caso, o que se observa é que setores infantilizados e domesticados das nossas esquerdas cortejam tanto Chico Xavier quanto o "funk", através de uma mesma simbologia: o aparente acolhimento das classes populares, através de uma visão estereotipara do povo pobre que, tanto através da mitificação do "médium" quanto do ritmo popularesco, aparecem romantizados pela narrativa esquerdista, como se as periferias fossem paraísos de casas precárias e sem asfaltos, iluminações nem saneamentos básicos.
As esquerdas se deram mal ao acolherem o "pacifismo" de Chico Xavier e a "alegria" dos funkeiros. E se recusam a aprender a lição, tamanha a fascinação mórbida em torno dessas duas simbologias, que na verdade refletem valores conservadores e formas de castração das classes populares, que sob os dois entes - "médium" e ritmo musical - , são tratadas de forma estereotipada e paternalista.
Mas outro aspecto pode ser considerado, que é o saudosismo débil e idiotizado que setores das esquerdas sentem, e que fazem esperar do ex-presidente Lula não o grande líder progressista, mas uma versão repaginada e mista de Dom João VI com Dom Pedro II.
É necessário que as pessoas vasculhem seus instintos ocultos, seu inconsciente macabro, agora que se está sob isolamento social. Devemos deixar o comportamento vicioso de parecermos "legais" a todo preço. Dentro das esquerdas, há muito direitista oculto, disfarçado, infiltrado. Há muita gente reacionária que se diz "progressista", há muita gente retrógrada que se diz "moderna" e o que mais se faz é gente burra argumentando o tempo todo e até fazendo de seus blogs arremedos de monografias.
Muitos movimentos de vanguarda têm inimigos internos querendo puxar o tapete, arrivistas querendo se promover pessoalmente e canastrões querendo demonstrar aquilo que não são nem sabem fazer. E isso se vê em toda parte no Brasil, de gente que joga a sinceridade no lixo e, de forma permanente, lutam para serem reconhecidos por aquilo que são incapazes de ser ou fazer.
Daí que nossas esquerdas são debilitadas porque, sobre elas, ainda pesam resíduos da direita cultural e midiática, que as fazem entender o povo pobre como uma multidão de indivíduos tolos e ingênuos, criando um contraste entre as lutas sociais autênticas - como o Movimento dos Sem-Terra e as manifestações diversas do povo suburbano nas rodovias de uma cidade - e os pobres domesticados pelo "baile funk" ou por algum evento "de caridade" de uma instituição "espírita".
E aí vemos que as esquerdas, agindo assim, não passam de meros saudosistas doentios, dentro de um contexto que o Brasil se apega a formas pré-modernas de atividades humanas - problema descrito apropriadamente pelo sociólogo Jessé Souza - , e, em vez de pensar num país realmente moderno e igualitário, embora se insista nisso em sua retórica, no fundo querem mesmo é retornar ao século XIX, de preferência a um estágio de relativa estabilidade do Segundo Império.
Esse saudosismo pode não ser coisa exclusiva das esquerdas, mas todos aqueles que cortejam o "funk" e a "figura humanista" de Chico Xavier, ambos ligados a uma simbologia que determina que "o futuro está no passado", e isso condiz a outros setores sociais, mais reacionários e golpistas, que, à maneira deles, também desejam a "volta ao passado", através da retomada gradual à escravidão e ao patrimonialismo das elites.
No "funk", temos a utopia de resgatar a "pobreza popular carioca" dos tempos anteriores a Pereira Passos, o prefeito da então capital do Brasil, o Rio de Janeiro, que começou a modernizar a cidade. O "funk" seria o resgate de uma "pureza do grotesco", uma fórmula criptografada, que as esquerdas ignoraram seu caráter macabro, que "devolve" ao povo pobre aspectos de ignorância, grosseria e atraso cultural e moral.
Eram os tempos em que o povo pobre, não se sabe realmente por que razões, realizou a Revolta da Vacina, em 1904, que causou vários atos de vandalismo no Rio. O "funk" só aceita a Educação quando ela incluir "oficinas de funk", porque o "funkeirocentrismo" só permite esquerdismo, pedagogia e outros valores edificantes se submetidos ao entretenimento funkeiro. E isso com o "feminismo" de uma Valesca Popozuda marcado por aspectos pré-modernos da objetificação machista do corpo feminino.
E o "espiritismo", tido como futurista? Essa imagem é enganosa, pois a praxe dos "espíritas" remete sempre à repaginação do Catolicismo da Idade Média, mesclado com Esoterismo e Ocultismo, criando duas "muletas" para substituir as pernas amputadas da Doutrina Espírita original: o cientificismo kardeciano, substituído pelo igrejismo medieval xavieriano, e os estudos da paranormalidade, substituídos pela canastrice mediúnica de Chico Xavier e por abordagens que envolvem até Astrologia.
Evocando Emmanuel, o "espiritismo" brasileiro explicitamente remete ao passado, contrariando a rota para frente de Allan Kardec, que se pautava pelos rumos do Iluminismo francês. Diferente disso, "nosso espiritismo" se pautou pelo Catolicismo medieval, já que Emmanuel é o novo nome do padre Manuel da Nóbrega, um jesuíta radicalmente medieval, personagem do período colonial de nosso país.
Muita gente não percebe, mas a Doutrina Espírita original foi desfigurada e desmontada no Brasil. É impossível relativizar isso, no caso de se admitir, atribuindo apenas a "alguns setores". Quem deturpou e desfigurou o Espiritismo foi a Federação "Espírita" Brasileira, acolhendo a obra deturpadora de Jean-Baptiste Roustaing, e, ao longo dos anos, Adolfo Bezerra de Menezes, Chico Xavier, Divaldo Franco e outros contribuíram para essa cruel traição doutrinária.
Os brasileiros não percebem o quanto são irremediavelmente atrasados nem conservadores. Querem o futuro, mas sob a condição de que ele recupere o passado. Ninguém quer algo novo, e, quando se imagina contrair o novo, sempre jogamos fora o que tínhamos ou havíamos sido de melhor, transformando o presente num lixo que será transformado em falso ouro pelas narrativas futuras.
Daí que, mesmo entre as esquerdas, a obsessão doentia pelo passado, a recuperação de zonas de conforto sociais, culturais, políticas e econômicas, torna-se um imperativo, mascarado por mil discursos que tentam relativismos vãos e todo esforço para dissimular intenções ocultas e desejos secretos.
Afinal, desde 2002 cria-se um simulacro de uma humanidade "tudo de bom": todos são "futuristas", "modernos", "progressistas", "altruístas", "humanistas", "vanguardistas", "alternativos" e até "nerds", tudo isso feito para agradar os outros, toda a pantomima cuja obsessão é criar um personagem permanente do qual até mesmo o próprio fingidor acredita ser, no desespero de ser reconhecido por aquilo que na verdade não é nem é capaz de fazer.
E nessa hipocrisia nem as esquerdas querem realmente Lula governando o país de novo. Ao endeusar o reacionário Chico Xavier e o "funk" que reduz o povo pobre a uma caricatura, as esquerdas domesticadas querem mesmo é a volta do Segundo Império, com um Rio de Janeiro exclusivamente suburbano, enquanto o governante progressista não é mais do que um rei hesitante em abolir a escravidão e apenas apostando numa modernização que nunca sai do seu começo.
Mas, num país marcado por resíduos pré-modernos, o que é a modernização senão uma recauchutagem do atraso, mediante apenas a implantação parcial de algumas novidades - como a própria Doutrina Espírita - , que são neutralizadas pela negociação oculta que se tem entre o "novo" e o "velho", onde nada se aproveita da novidade original e muito se recicla e maquia daquilo que está velho, decadente e obsoleto. Daí o nosso Brasil submisso à figura caipira, retrógrada e presa ao século XIX do suposto médium Chico Xavier.
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