Precisamos rever muitos conceitos, nesses tempos em que um político fascista foi eleito presidente da República, num Brasil onde não se imaginava que isso pudesse acontecer. E aconteceu, apesar de tanas advertências, no Brasil e no mundo, apesar de tantos avisos, tantas análises, tantos alertas.
O Brasil de Jair Bolsonaro nos faz refletir. Afinal, apesar de uma parcela da sociedade querer que o nosso país voltasse à Era Geisel, com uma "democracia" controlada por uma estrutura ditatorial e com as elites mantendo seus privilégios e abusos, a situação está tão complicada e delicada que, embora os excluídos devam sofrer mais infortúnios, as elites embarcaram numa viagem sem volta em seu Titanic.
As forças sociais progressistas deveriam rever seus valores, porque muito do que se acreditou ser "moderno e progressista", até mesmo pelas esquerdas, era na verdade profundamente reacionário e retrógrado. O que contribuiu fortemente para o fracasso das forças progressistas que cultuavam "heróis de direita" associados a falsos pretextos de humildade, pobreza e simplicidade.
E aí temos que rever até mesmo os conceitos de paz. Afinal, que paz queremos? Aquela que põe os conflitos e injustiças debaixo do tapete? Aquela que pede para o oprimido aceitar suas desgraças em paz e aceitar, também em paz, os abusos e os privilégios e vantagens excessivos dos opressores?
Da mesma forma, que caridade queremos? Aquela que pouco ajuda aos necessitados, mas rende as mais altas glórias e os mais entusiasmados aplausos ao "benfeitor"? Que caridade é essa em que o benfeitor exerce um estranho protagonismo, independente dos resultados alcançados? Que caridade é essa em que se preocupa mais com a reputação do suposto benfeitor do que pela qualidade dos resultados obtidos?
Estamos num momento de reeducar sentimentos, perspectivas, visões de vida. Criamos, nos últimos 40 anos, estranhos paradigmas que misturam, de maneira confusa, rigores moralistas e a permissividade social. Tanto que, em nome da recuperação da hierarquia, aceitou-se que fosse eleita uma chapa em que o titular à Presidência da República é um capitão e seu superior, um general, é seu vice-presidente, numa insólita quebra de hierarquia militar.
Somos um país que, em que pese termos um imenso número de pessoas admiráveis que morreram antes dos 70 anos de idade - e várias delas muito jovens, de Castro Alves a Leila Diniz, de Noel Rosa a Gláucio Gil - , incluindo gigantes como Alberto Santos Dumont, Renato Russo e Mário de Andrade, os brasileiros que a sociedade moralista têm muito medo de morrerem são dois feminicidas de 80 e tantos anos.
Doca Street e Pimenta Neves estão muito doentes não porque queremos ou porque o ódio os fez ficar assim. Seus organismos não são mais especiais do que outras pessoas e eles estão em situação frágil por causa dos danos à saúde. O primeiro, no passado, fumou, se embriagou e consumiu drogas demais. O segundo, fumava e ingeriu uma overdose de comprimidos após assassinar a ex-namorada. Não faz sentido supor que Pimenta Neves seja mais forte que Heath Ledger, ao lidar com overdoses.
A tendência natural é os dois estarem perto da morte (Doca com 84, Pimenta com 81, praticamente no fim de suas vidas), e isso é estranhamente doloroso para uma sociedade moralista que, nesses casos, supõe acusações de ódio, logo esta sociedade que é movida por explosões de rancor maiores do que as que inventa dos outros. E isso quando se fala em liberar o porte de armas, pois Doca e Pimenta mataram suas namoradas com tiros de revólver.
Não se trata de um clamor rancoroso, até porque os mais devotos amigos de Doca já advertiram sobre seu risco de doenças, quando ele ainda tinha 42 anos. Ninguém esperava que ele vivesse além de 55 anos de idade, e desde os anos 90 seus advogados estranhamente patrulhavam a mídia, evitando até que um filme sobre o crime dele fosse produzido. E a prova da fragilidade do ex-playboy se deu quando ele tentou doar um rim a um sobrinho, que morreu por rejeição a esse órgão.
Na religião, temos que mudar completamente nossos modos de pensar. Temos que mudar tudo. Afinal, não se está na década de 1970. Não vivemos mais o tempo em que não se acreditava que fumar demais fosse encurtar a vida, usar um revólver era garantia de segurança e ser reacionário nunca traria repercussões negativas na sociedade em geral.
As elites reacionárias retomaram seu protagonismo, elegendo Jair Bolsonaro presidente dois anos e meio após derrubarem a progressista Dilma Rousseff. Querem forçar a marcha-a-ré histórica para anos ou séculos, dependendo da perspectiva: pode ser para a Era Geisel, ou para a República Velha, ou para o Segundo Império, ou mesmo para o Brasil-colônia.
Muitos aparentes vencedores saíram derrotados com a vitória de Jair Bolsonaro, que já deve ser definida como uma vitória de Pirro, que causará uma série de decepções. Já se fala em multidões de bolsonaristas arrependidos. O desembarque de aliados circunstanciais poderá ser rápido e ser eleitor de Bolsonaro já será considerado vergonha nacional a partir de abril de 2019, segundo especialistas.
PAZ SEM VOZ - "FILANTROPOS" QUE A DIREITA GOSTA, MADRE TERESA DE CALCUTÁ E CHICO XAVIER SEMPRE FIZERAM APOLOGIA DA DESGRAÇA HUMANA.
O "espiritismo" brasileiro comprovou ser um dos responsáveis por esse cenário desastroso. Há muitos culpados nesse condicionamento social, cultural e psicológico que permitiram a ascensão e a vitória de Bolsonaro. Elites que não conseguiram educar as gerações mais recentes, ensinando valores relevantes. Religiosos mais preocupados em adoração do que em progresso moral.
O "movimento espírita", que foi pego em flagrante "comendo" dos banquetes dos neopentecostais, é culpado por abrir caminho a Bolsonaro. E se revelou que o "espiritismo" de Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco foi tão beneficiado pela ditadura militar quanto igrejas evangélicas como Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus e Assembleia de Deus.
E aí relembramos Jesus de Nazaré. Ele reprovava, com sua sabedoria, as atuações fúteis dos vendilhões do tempo e dos escribas e falsos profetas, os primeiros gananciosos na comercialização da fé, os segundos no envaidecimento pedante e na falsa modéstia de sua falsa sabedoria, na qual o "saber" era mais um objeto de posse do que um dom, e que eventualmente os fazia inventar pretensas profecias.
Os vendilhões do tempo foram identificados oficialmente: Edir Macedo, R. R. Soares, Silas Malafaia e tantos outros. Os escribas e falsos profetas, associados ao falso saber e à pretensão de posse da verdade, marcados também pela cosmética das palavras e pelo aparato de falsa humildade, ainda devem ser identificados oficialmente. Mas Chico Xavier e Divaldo Franco se encaixam perfeitamente nessas lamentáveis caraterísticas.
E sobretudo Chico Xavier, um arrivista nos moldes parecidos com os de Jair Bolsonaro. Ele se tornou "símbolo de amor, bondade e caridade" por meio de paradigmas extremamente conservadores, os mesmos que blindam, no exterior, a Madre Teresa de Calcutá.
Embora vistos com muita complacência por forças progressistas, até pelo apelo artificial de imagens de crianças pobres associadas a Chico e Teresa, os dois são aberta e terrivelmente conservadores, adotando posturas reacionárias profundas, condenando o aborto em qualquer hipótese e apoiando a Teologia do Sofrimento, corrente medieval da Igreja Católica, e que soa como uma espécie de "holocausto do bem".
Até os ideais de "caridade" e "paz", tão associados a eles e que fazem até marxistas e ateus dormirem tranquilos, são extremamente conservadores e de direita. Ações paliativas e paternalistas de resultados medíocres, que não combatem a pobreza de verdade e só rendem adoração aos supostos benfeitores (no caso, Chico, Teresa, Divaldo etc), uma "caridade" que ajuda mais o "benfeitor" do que os necessitados e que não rompe com os privilégios abusivos das elites.
No caso da paz, é o ideal da "paz sem voz". Uma "paz" que põe os conflitos debaixo do tapete, uma espécie de "conciliação por cima". O sofredor é que tem que aguentar, "em paz", as desgraças e adversidades que acumula em sua vida e as quais tem dificuldade em controlar ou evitar. Pior: o sofredor tem que, também, aceitar, "em paz", sob o pretexto do "perdão", os abusos e privilégios excessivos dos opressores e algozes.
É uma "paz" que não resolve conflitos, não estabelece justiça, é uma "trégua passiva" em que se deixa tudo como está, esperando que o "arbítrio de Deus" traga as soluções no "tempo oportuno" (geralmente em alguma fase tardia da vida ou na próxima encarnação).
Temos que romper com essa "paz" que tranquiliza o opressor e fragiliza o oprimido, e com essa "caridade" que ajuda mais o suposto benfeitor do que os necessitados. É mais justo e benéfico que as pessoas progressistas rompessem com a adoração a Chico Xavier, Madre Teresa e outros, que na verdade nunca dizem coisa alguma de relevante a respeito da verdadeira paz e da verdadeira caridade.
Se buscamos exemplos de dedicação ao próximo, há vários exemplos muitíssimo melhores e infinitamente mais eficientes, muitos bem distantes da sombra das idolatrias da fé religiosa. Além disso, se procuramos bons exemplos, façamos nós mesmos, evitando a crueldade violenta que envenena o organismo e praticando altruísmo sem nos preocuparmos com ostentação e aplausos alheios.
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