As bombas semióticas que ligam Chico Xavier e Jair Bolsonaro surpreeendem, embora muita gente esperneie feito crianças teimosas se recusando a admitir o vínculo entre os dois, que formam uma dicotomia similar ao que se vê, simbolicamente, no livro O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll & Mr. Hyde), de Robert Louis Stevenson.
As pessoas preferem e insistem, até com certa fúria (fúria bolsonarista?), na imagem "água com açúcar" que Chico Xavier carrega há cerca de 40 anos e que foi forjada pela ditadura militar como cortina de fumaça para tentar evitar a decadência do regime e também evitar a ascensão de líderes populares como o então líder sindical e depois presidente da República, Lula.
Circula na Internet essa imagem, em que os "opostos" Jair Messias Bolsonaro e Francisco Cândido Xavier aparecem juntos em uma montagem, ambos de terno e gravata e expressando o mesmo sorriso de olhos apertados, embora o "médium" apareça com a cabeça um pouco mais baixa, sugerindo uma envergonhada semelhança com o ex-capitão. Até os topetes parecem se contrapôr em reflexo, com a franja de Jair posta num lado simétrico ao de Chico, como em um espelho.
A transição de cores entre cinza e branco, nesta montagem, também sugere um espelho. Chico Xavier é o reflexo de Jair Bolsonaro, e vice-versa. Oposto? Não, necessariamente, pois os reflexos possuem um vínculo de semelhança, e, além disso, Chico Xavier não representa necessariamente o "amor" e Jair Bolsonaro, não necessariamente, o "ódio".
Chico Xavier já fez comentários ríspidos contra os amigos de Jair Presente - ironicamente, outro Jair, na ironia do sobrenome ausente há 46 anos do mundo físico - , desconfiados das "psicografias". O "bondoso médium" também fez acusações levianas, comparáveis aos bolsonaristas, contra pessoas humildes que foram vítimas - entre mortos, feridos e sobreviventes traumatizados - de um incêndio criminoso num circo de Niterói, em dezembro de 1961.
Como um bolsonarista levantando falsas acusações, Chico Xavier, sem o menor embasamento, acusou as vítimas (gente pobre, humilde!!!!) de terem sido "gauleses sanguinários" do século II (a Gália era a parte do Império Romano correspondente à atual França, a pátria de Allan Kardec). E, como todo bolsonarista, houve transferência de responsabilidade, acusando o pobre Humberto de Campos, que não está aí para reclamar, de ter feito tão impiedosas e infundadas acusações.
Isso ocorreu no livro Cartas e Crônicas, de 1966. A acusação leviana se fantasiou de "revelação espiritual" para enganar multidões, intimidando as pessoas com a alegação de "reajustes espirituais", esse lado macabro do "espiritismo" que costuma ter, oficialmente, uma imagem dócil e simpática, mas que esconde aspectos doutrinários terríveis, como o moralismo punitivista, herdado de Jean-Baptiste Roustaing (o verdadeiro "codificador" do "espiritismo" brasileiro).
A responsabilização tendenciosa e farsesca a Humberto é agravada pela dissimulação. Afinal, o nome de "Irmão X" serve para uso externo, para evitar problemas jurídicos - afastados depois daquele assédio cafajeste, em 1957, que Chico Xavier fez a Humberto de Campos Filho, induzindo-o até a fazer sopas, este, que, antes cético, tornou-se um patamente submisso seguidor do "médium" - , mas dentro do "meio espírita" todos sabem que o crédito se refere ao escritor maranhense.
Enquanto há casos em que Chico Xavier - que foi um apoiador convicto e radical da ditadura militar, e, portanto, um apoiador de opressores - manifesta pontos negativos, como o ódio, o julgamento de valor cruel e injusto e o apreço à tirania, vemos Jair Bolsonaro, símbolo do "ódio" e da "violação dos direitos humanos" cumprimentando, simpático, o padeiro da esquina, carregando bebê no colo, fazendo piada com as pessoas comuns.
Que diferença há entre os dois, se Chico Xavier tem seus momentos Jair Bolsonaro e Jair Bolsonaro tem seus momentos Chico Xavier? Olavo de Carvalho falando de "amor" como se fosse Emmanuel? E o lema "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", traduzido num termo mais acessível para o nível intelectual dos bolsonaristas, "Brasil, Acima de Tudo, Deus, Acima de Todos"?
A guerra semiológica que tenta separar Chico Xavier de Jair Bolsonaro, como quem tenta separar gêmeos siameses, ocorre sob o desespero de seguidores do "médium" brigarem o tempo todo com a realidade, na ironia desses adeptos e simpatizantes serem, em tese, avessos à violência. Em tese, porque os seguidores de Chico Xavier, quando as ocasiões permitem, são capazes de manifestos de ódio e vingança a níveis rigorosamente bolsonaristas.
O que é a ameaça recente de médicos e cientistas em Manaus, pesquisando sobre os efeitos colaterais do coronavírus diante da ameaça que Amauri Xavier recebeu do "meio espírita" (confirmada pela revista Manchete, em matéria de agosto de 1958) quando ele foi denunciar as fraudes "mediúnicas" do seu tio Chico Xavier?
Os médicos e cientistas (estes da Fiocruz) tiveram dados pessoais expostos, para o linchamento virtual dos bolsonaristas. A vida de Amauri também foi exposta para o linchamento dos "espíritas", estes tão zelosos em renegar o ódio, mas eventualmente são tão preocupantemente rancorosos!
Por enquanto, as "guarnições militares" não foram enviadas pelos "robôs" bolsonaristas para eliminar os cientistas. Mas, em 1961, os chiquistas se adiantaram e um deles mandou o "amável irmãozinho" Amauri para a "pátria espiritual", por envenenamento (ameaça descrita na matéria de Manchete), com o "meio espírita" chorando lágrimas de crocodilo com o destino trágico do rapaz, a quem diziam "sentir profunda consideração e misericórdia".
"FADA-MADRINHA"
Chico Xavier é uma espécie de "fada-madrinha" ou "princesa da Disney" do público adulto ou idoso. Sua imagem, adorada por muitos, se resume a uma seleção de frases colhidas em livros e depoimentos que parecem agradáveis e lembram textos de livros de auto-ajuda. A suposta caridade, a qual nem sequer o "médium" fez, mas foram terceiros e ainda assim sob os limites de um pálido Assistencialismo, também é uma falácia que repete feito um disco riscado.
É como se reembalassem o "médium" e transformassem-no em algo condimentado e alterado para o consumo fácil das pessoas. Extrai-se dos seus livros aquilo que mais está de acordo com o sentimentalismo piegas e moralista do público médio, com pequenas doses de "otimismo" e "consolação", e se oferece para o público médio, como se fosse "a trajetória de um dos maiores líderes humanistas do mundo".
Num país desinformado como o Brasil, essas falácias funcionam e muita gente, agindo pelo piloto automático, vai para as redes sociais e despeja um meme com frases de Chico Xavier, introduzindo comentários tolos do tipo "Essa é para começar o dia feliz", "Com muitas saudades do inesquecível médium, aqui vai sua lição de sabedoria", "Lembrando do mestre que melhor traduziu Jesus Cristo para nossos dias" e outras inverdades encharcadas de muita pieguice.
Desde 1979 tem-se esse hábito, que transforma o nome "Chico Xavier" numa sineta para os "cães de Pavlov" a que se reduziu a maioria dos brasileiros. Quando há um acúmulo de notícias trágicas, aciona-se, no Twitter, o nome do "médium" para os trend topics (espécie de lista das "10 ou 20 mais"), e evoca-se a ridícula "profecia da data-limite", que até Kardec reprovaria com imediata firmeza.
Mas a "sineta" do "médium" também aciona diante do "prato vazio" das más notícias, bastando o internauta mais ingênuo ter a "brilhante ideia" de pegar umas frases do "médium" para compartilhar com seus amigos, talvez espalhando o "vírus da maldição" que, em algum momento, irá fazer seus jovens filhos morrerem prematuramente por alguma ocorrência surgida do nada.
Como a religião se torna um parque de diversões para o pensamento desejoso - cuja forma, religiosamente sistematizada, resulta na "fé" - , Chico Xavier torna-se uma das únicas pessoas, senão a única - considera-se a outra pessoa o médico Adolfo Bezerra de Menezes, um dos fundadores do "espiritismo" brasileiro - , cuja biografia prevalece a fantasia acima da realidade, com muitos acreditando que a "realidade" é a própria fantasia.
E aí as pessoas acreditam numa falsa polarização que, supostamente, separa Chico Xavier e Jair Bolsonaro, quando os dois não passam de dois lados de uma mesma moeda arrivista, que, sob uma observação mais cuidadosa, não são muito diferentes entre si, pois Dr. Jekyll pode ser Mr. Hyde e vice-versa.
Ambos tiveram uma ascensão arrivista e a forma com que indignaram a sociedade na época é idêntica. Um livro de poesias fake tramado em parceria com dirigentes da FEB e consultores literários e um plano de atentados terroristas em quartéis forjado em parceria com colegas do Exército fluminense.
Chico Xavier se consagrou lançando livros supostamente mediúnicos que se revelaram literatura fake, pois os estilos de seus "autores mortos" sempre falhava, de maneira grave, diante de algum aspecto pessoal deixado em vida. Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República através do disparo de fake news lançado em doses industriais pelas mais diversas redes sociais.
Um juiz suplente, João Frederico Mourão Russell, permitiu a impunidade de Chico Xavier no caso Humberto de Campos e ainda cobrou custos advocatícios à viúva do escritor. Uma juíza suplente, Carolina Lebbos, ajudou a tirar Lula da corrida eleitoral, favorecendo a vitória de Jair Bolsonaro sem enfrentar um concorrente de grande projeção. E os custos advocatícios já haviam voltado com o golpe contra Dilma Rousseff, desta vez como item dos processos empregatícios da reforma trabalhista.
A falsa polarização de Chico Xavier e Jair Bolsonaro - simbolicamente desmentida pela ilustração acima, com ambos fazendo a mesma pose (sendo Chico, com a cabeça inclinada para baixo, o mais "enrustido"), sob um fundo de "vidro" junto à imagem do "médium" e com a franja de um em lado oposto e se encontrando com a franja do outro - é retrato do Brasil dissimulado que temos.
Afinal, não é Chico Xavier que é progressista, mas seus seguidores "progressistas" os mais conservadores. É fácil defender um discurso "humanista" e "progressista", mas é só conversar com essa pessoa e apresentar argumentos que essa pessoa que adora Chico Xavier se revelará, na verdade, alguém profundamente conservador, ainda que continue tendo vergonha em assumir isso.
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