O Brasil passa por profundos desastres, mas, também, em muitos casos, pela preguiça das zonas de conforto, porque as pessoas se mantém apegadas em paradigmas velhos, que perdem sentido, e teimam em mantê-los tentando relativizar seus problemas.
Essa relativização vem sobretudo dos pretensos "intelectuais de WhatsApp", aquelas pessoas chatas que vivem patrulhando o "estabelecido", e fazem aquele discurso do tipo: "é verdade que tal fenômeno tem seus problemas, mas acho um exagero você contestá-lo com a profundidade que está fazendo. Acho que esse fenômeno, com toda sua imperfeição, tem sua validade".
O grande problema no Brasil é que as pessoas querem demais, dissimulam seus defeitos, tentam agradar a todos, tentam mentir a si mesmos, e lutam para manter o país dentro da mediocridade moral em que vivemos, onde os arrivistas levam vantagem, criminosos ricos ficam impunes e nossa cultura sucumbe à uma imbecilização incurável.
Só que as pessoas não sabem a medida de seus desejos, necessidades e neuroses. A tendência surreal de uma sociedade moralista se sentir ofendida quando se fala que feminicidas ricos podem ficar gravemente doentes e morrer é assustadora. O absurdo não está em se falar que homens que matam suas próprias mulheres também podem morrer um dia, mas a revolta que setores da sociedade têm diante dessa realidade é que é surreal.
As pessoas são realmente legais? As pessoas são realmente progressistas e modernas? Será que elas não possuem algum ponto sombrio em suas personalidades? O que se vê muitos pais conservadores chorando quando seus filhos lhes definem como tais é assustador, assim como, quando falamos que os internautas das redes sociais são em maioria reacionários, muitos engraçadinhos respondem com a hipócrita ironia do "KKKKKKK", que é não levar a sério e rir de certas verdades ditas.
PRECISO VER NECESSIDADES E DESEJOS
Há pretensiosos de todo tipo. Gente que se diz de "esquerda" porque quer parecer "legal", integra um coletivo "cultural" que luta para receber verbas estatais e doações privadas e acha que é "muito festiva" para apoiar, ao menos, o PSDB, apesar de muitas vezes compartilhar valores da bregalização cultural trazida pela mídia conservadora (Globo, SBT, Band, Folha, Abril).
Há gente que nem curte rock, propriamente, ouve até o "sertanejo" mais lacrimoso - tipo os canastrões Chitãozinho & Xororó - , mas que precisa se passar por roqueiro para parecer cool e diante da "igreja radiofônica" da Rádio Cidade, nos 102,9 mhz do Rio de Janeiro, precisa ouvir uma sequência de sons identificáveis com rock. Se entrar a introdução de "Borderline", sucesso da Madonna, nas ondas da Rádio Cidade, se enfurecem sem o menor motivo, mesmo tendo a rádio lançado a música no dial carioca de 1983-1984.
As pessoas precisam ver quem elas são e o que elas querem. Será que elas precisam mesmo serem modernas? Será que elas não seriam medievais? E a música que ouvem? E, na vida amorosa, os homens realmente querem as mulheres com quem estão casados? E as fãs de "pagode romântico", elas não pararam para pensar por que elas cismam em paquerar e desejar rapazes modestos que curtem as músicas sombrias do Joy Division e não os rapazes do meio social delas?
O que realmente precisamos? Até que ponto sair ou ficar na situação presente vale a pena? De um lado, somos aventureiros a embarcar em ousadias na qual não somos preparados ou em escolhas que, por serem fáceis de obter, não necessariamente nos trariam algo proveitoso para nossas naturezas pessoais. De outro lado, permanecemos numa zona de conforto irritante, que faz com que, por exemplo, os moradores de Niterói se irritem quando alguém lembra os problemas mais profundos deste município fluminense.
É necessário ver necessidades, desejos, ambições. No Brasil de arrivistas, pessoas querem cair de para-quedas em terrenos que não lhes são de sua competência. Há aventureiros aqui e ali, e somos complacentes com tudo, com a mediocridade e as ambições desmedidas que fazem com que as pessoas não saibam realmente o que querem ou precisam na vida.
Ver niteroienses irritados porque se fala que se devem construir novas avenidas e passarelas para melhorar o trânsito de veículos e pedestres ou ver moralistas se irritando só de ver que um feminicida velho ou talvez nem tão velho assim sofre um câncer em estágio avançado são coisas que forçam o Brasil a realmente ver suas zonas de conforto e suas necessidades e desejos.
No caso dos feminicidas que morrem, a coisa é tão surreal que é contrastante a grande resignação que setores da sociedade têm quando morre alguém admirável - recentemente, perdemos a sambista Beth Carvalho - em contrapartida com a revolta que se tem quando se fala que Doca Street e Pimenta Neves estão a poucos passos do cemitério. Apego doentio aos feminicidas é dose.
Se irritar por coisas assim são até mais absurdas do que a revolta histórica dos cariocas de 1904, quando fizeram um protesto violento contra a obrigatoriedade da vacina determinada pelo sanitarista Osvaldo Cruz (ainda vivo e longe de ser usurpado como "suposta encarnação de André Luiz"). Passamos a nos apegar ao que não necessitamos e vamos a uma busca frenética ao que não queremos. Essa é a verdade.
CHICO XAVIER "NÃO SERIA" BOLSONARISTA? LEIAM SEUS LIVROS...
Pode ser chocante e repulsivo ver que um considerável número de brasileiros, como atores de novela, subcelebridades, cantores "sertanejos", funkeiros e atores de novela terem manifestado seu apoio à candidatura do retrógrado Jair Bolsonaro, mas pelo menos isso é uma demonstração de sinceridade que pode ser macabra e em certo sentido assustadora, mas não é dissimulada.
Há críticos musicais que endeusam o deus mercado e querem ver pobres domesticados pela breguice cultural, e teimam em parecer "esquerdistas exemplares", esculhambando "de mentira" o direitista da moda, xingando antigos patrões e bajulando políticos progressistas para ficar bem na fita.
Há mulheres que, só por causa do gênero, se dizem "feministas" mas acolhem "mulheres-objetos" que se aliam ao imaginário machista (tipo Mulher Melão e Geisy Arruda, mas incluindo funkeiras e algumas "garotas da Banheira do Gugu") como supostas empoderadas, às vezes soltando comentários maliciosos do tipo "não sei se as mulheres das periferias estão preparadas para o tipo clássico de feminismo e é legal elas fazerem 'feminismo' dentro do contexto da hipersexualização".
Tem muita gente que tem preocupação tanta em parecer "legal" que, na sua neurose, tentam mentir para si mesmas. Fingem tanto que acabam fingindo para si mesmas, e suas pessoas se tornam personagens que precisam sobreviver até na privacidade. Ficamos perguntando aos homens que decidem praticar feminicídio se eles realmente tiveram necessidade de namorar as mulheres que se tornaram suas vítimas e que poderiam ser companheiras de outros homens, mais afins, dignos e respeitadores.
No "espiritismo" brasileiro, vemos pessoas que se dividem em um dilema oculto: são progressistas mas acolhem o ideário ultraconservador de Francisco Cândido Xavier, sem mesmo saber. Reagem com revolta quando alguém lhe lembra que Chico Xavier apoiou a ditadura, uma tese tão verídica, mas de tão dolorosa faz com que até acadêmicos como Ronaldo Terra, mestrando em Ciências Sociais, apelassem para o pensamento desejoso ao supor que o "médium" apoiou a ditadura "sem necessariamente apoiá-la".
De repente, surgem fantasias, muitas delas mórbidas, com o rosto de Chico Xavier flutuando no céu azul ou envolto em coraçõezinhos, ou então inserindo a palavra "Amor" ao lado de seu nome ou mesmo como seu sobrenome do meio, e as pessoas se recusam obsessivamente em admitir que o "médium" era um ultraconservador convicto.
Tenhamos paciência. Pessoas muito adoradas como Roberto Carlos, Sílvio Santos, Regina Duarte, Pelé e tantos outros são reconhecidamente conservadoras. Ninguém faz pensamento desejoso para Regina Duarte, usando como pretexto as personagens empoderadas que ela fez em novelas e especiais da Rede Globo. Mas as pessoas se irritam quando se fala, por exemplo, que Chico Xavier apoiaria Jair Bolsonaro.
Essas pessoas, que se dizem de esquerda, adotam uma irritabilidade tipicamente bolsomínion. Coincidência? As pessoas acabam tendo confusão mental, por conta das escolhas dispersas que se tem, achando que a vida é um restaurante a quilo no qual se pode misturar doce de leite num prato de feijoada.
As pessoas se chocam quando alguém lhes diz que Chico Xavier defendeu a ditadura, tinha pavor de Lula e, se vivesse hoje, seria bolsonarista. Mas tudo isso se baseia em fatos. As obras de Chico Xavier são de um conservadorismo bastante doentio que se pergunta se elas seriam mais antigas que os livros de Allan Kardec, diante de tanto igrejismo medieval e tanto moralismo antiquado.
É sério. Basta uma leitura menos deslumbrada. Sem essa da imagem "fada-madrinha" que o "médium" exerce nos seus seguidores. Se observarmos o que os livros de Chico Xavier dizem, as ideias não são muito diferentes de Jair Bolsonaro: a apologia ao trabalho exaustivo, a conformação com a desgraça humana, a reprovação do senso crítico, ver a homossexualidade como um desvio aos desígnios de Deus, a defesa da servidão e da submissão extrema à hierarquia social etc.
Se as pessoas lessem com atenção os livros de Chico Xavier e deixassem de lado as fantasias em torno de jardins floridos, céus azulados e crianças sorridentes, além de pararem de sonhar em ver cãezinhos e gatinhos fofinhos pulando nas relvas de Nosso Lar, verão que o "médium" tinha um ultraconservadorismo tão convicto que teria feito um esquerdista pensar duas vezes antes de mencionar o mínimo apreço ou a menor consideração ao "médium".
O mais grave é que, mesmo quando Chico Xavier aponta uma única diferença ao ideário bolsonarista, que é rejeitar ações violentas, os seguidores do "médium" demonstram ser tão violentos e rancorosos quanto os de Jair Bolsonaro. Esse é um aspecto oculto que ninguém fala e todos acham inconcebível, mas a prática mostra que os chiquistas também podem ser odiosos, rancorosos e vingativos.
O caso de Chico Xavier mostra o quanto os brasileiros estão confusos em suas abordagens, desejos, compreensões, ambições etc. Poucos sabem que Chico Xavier deturpou o Espiritismo e muitas ideias de seus livros são vergonhosas traições aos postulados da Doutrina Espírita original. Poucos percebem que ele era um ultraconservador, um reacionário extremo, respaldados na imagem fantasiosa do "velhinho frágil que cheirava flores".
Temos que prestar atenção a fatos, a ideias sutis e ocultas pelas conveniências de cada momento. Chico Xavier foi o Olavo de Carvalho da ditadura militar e poucos perceberam, e tem muita gente considerada de esquerda, inclusive semiólogos que criticam vícios das esquerdas, que caiu na armadilha do "médium bondoso" que os noticiários da Rede Globo traziam para o imaginário popular.
Só o fato de que muitos esquerdistas acolhem os valores sócio-culturais que a Rede Globo difundiu na ditadura militar - que envolvem valores presentes no brega e no "funk", além da supervalorização do futebol e na adoração a "médiuns" como Chico Xavier - revela que tem muito progressista que vive de verdadeira confusão mental, pelos conflitos que têm em suas escolhas ideológicas. E ficamos perguntando: será que essas pessoas querem realmente ser de esquerda ou não seria melhor elas romperem com o moralismo direitista de Chico Xavier?
A vida não é um restaurante a quilo onde se pega tudo que quer. É preciso parar para pensar e ver o que realmente precisamos na vida, sem sonhar demais, sem pretender demais e sem dissimular nossos limites e debilidades. É isso que falta para que o Brasil possa, ao menor, seguir um rumo, começando pela quebra de pretensões, dissimulações e apegos doentios. É necessário nos livrarmos de entulhos mentais aqui e ali para tirar o peso do nosso país e dar a ele um rumo menos problemático, em vez de nos conformarmos com os graves erros e desastres que fazem uma nação medíocre e desigual.
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