Dedicado a todos os leitores de Cinegnose e aos semiólogos brasileiros em geral
"Não Questiones" é um hipotético filme que mostra as bombas semióticas de F., um jovem de aparência pouco atrativa, com problemas de visão num dos olhos e que lhe dá uma aparência pitoresca, associada a uma mentalidade que sugere esquizofrenia.
F. é um sujeito nascido numa cidade do interior e sua família é de origem humilde. Ainda criança, ele perdeu sua mãe, morta prematuramente por determinada enfermidade. Esquizofrênico, passou a mostrar que conversava aparentemente sozinho, mas depois se observava que ele mantinha conversas com a falecida mãe. O pai, vendo isso, ameaçou internar F. num hospício. Uma madrinha que o criou lhe dava surras constantes por causa do comportamento estranho do rapaz.
O rapaz escrevia poemas de própria mente. Era católico devoto. De repente, ele foi apresentado a um "centro espírita" por uma parente, e, sabendo que o menino falava com o espírito da mãe, um dirigente lhe sugeriu se ele não poderia enviar mensagens espirituais. F. aceitou a sugestão, embora não tivesse concentração suficiente para exercer tarefa de tão grande envergadura.
Ele lia muito, e aí, nos bastidores, alguém lhe falou que ele seria ajudado por várias pessoas da instituição "espírita" para produzir obras tidas como "do além". Mas F. perguntou ao dirigente se essa tarefa não seria desonesta. O dirigente respondeu: "Vamos falar de Jesus, de fraternidade. Não creio que falar de Jesus possa despertar acusações de desonestidade". F. aceitou.
Mas o primeiro livro tornou-se ambicioso: produzir uma coletânea poética que reproduzisse os mais diversos estilos ligados aos maiores escritores brasileiros. F., como dissemos, lia muitos livros, mas era notável a dificuldade de imitar tantos estilos literários, de forma a fazer parecer que eram os poetas mortos que voltaram a falar através das novas obras ditadas do além.
O livro foi produzido, mas o resultado era tão capenga que, em duas décadas, cinco edições foram lançadas. O título, além disso, soava anacrônico, evocando o Parnasianismo - apesar de boa parte dos poemas serem atribuídos a autores românticos - numa época em que o Modernismo já estava consolidado.
As vendas foram boas, mas o livro foi mal recebido pela crítica literária. H., um popular escritor que era membro de uma academia de literatos, escreveu uma resenha em duas partes fazendo comentários irônicos, sugerindo que a imitação é "perfeita", mas desaconselhou a brincadeira, porque não queria que os "autores mortos" competissem com os autores vivos.
F. não teria gostado da crítica. Ele queria ver seu primeiro livro elogiado pelo ilustre cronista. Mas eis que o destino fez H. morrer prematuramente, e, sabendo da tragédia, F. inventou um sonho, no qual H. se destacou da multidão para se apresentar ao jovem. Esse sonho teria sido inventado para forjar a suposta parceria que F. queria fazer, se apropriando do nome do escritor morto.
A comunidade literária se revoltou tanto com a antologia poética quanto com a obra supostamente espiritual que leva o nome de H.. Mas um dado semiótico põe o conservadorismo religioso como uma fonte de virtudes, num país obscurantista como o Brasil, o que fez com que, de maneira equivocada mas convincente, os críticos literários fossem vistos como vilões, apesar da obra de F. ser desonesta.
Isso se deve por uma das bombas semióticas mais influentes no Brasil: o que é religioso tem que ser "sempre honesto", ainda que sua desonestidade seja evidente, pela associação a ideias agradáveis como "amor", "paz" "caridade" e "fraternidade cristã" que não soam perversos, e, portanto, não soam como fontes aparentes de engano e mentira, para os olhos de quem entende a vida de maneira binária e simplista.
F. encontrou obstáculos pela frente e usou as diversas bombas semióticas para levar vantagem, permitindo que sua escalada arrivista, ou seja, através de uma ascensão realizada de modo não muito honesto, constituísse num caminho para a divinização de sua pessoa.
Assim, se F. foi processado por usurpar o nome de um escritor morto prestigiado, ele passava a usar a religião como pretexto para ficar impune e seguir com essa usurpação, ainda que disfarçasse o nome do autor por um pseudônimo.
Se ele foi denunciado por participar de rituais de falsa materialização, com modelos vestindo roupas brancas e, sobre a cabeça, são colados retratos de pessoas mortas fotocopiados, é porque F. foi "enganado" por seus realizadores. Neste caso, F. se deixava valer de sua aparência ao mesmo tempo esquisita e feia e seu jeito humilde de caipira interiorano para ser bem sucedido no seu vitimismo, ficando calado diante de pesadas acusações e deixando a reação para seus seguidores.
Um sobrinho que iria seguir a carreira do tio passou a denunciá-lo depois, e isso criou uma situação tão incômoda que o jovem teve que ser alvo de campanha difamatória, de um "espiritismo" que dizia não pregar o ódio mas que reagiu à denúncia de maneira mais rancorosa possível, e essa reação drástica teve que ser defendida sob o pretexto de proteger uma "figura tão pura" que era F., a essas alturas beirando os 50 anos de idade.
Ele foi denunciado por participar de um espetáculo de falsa materialização montado por uma farsante que julgava resgatar materialmente uma freira, um médico e uma criança. Mas F. foi protegido pelo prestígio religioso e foi considerado "vítima", tendo sido supostamente enganado pela farsante.
F. participou de um programa de TV defendendo a ditadura militar. Foi à Escola Superior de Guerra e a um outro evento político receber homenagens. Apesar dessas atitudes convictas, seus partidários usavam a bomba semiótica da "caridade": diziam que F. só queria agradar os generais para não ser perseguido, e alegavam que ele não havia apoiado a ditadura. Mas outros seguidores falavam que F. apoiou, mas era apenas um "impulso do momento".
Várias bombas semióticas eram despejadas a cada incidente, sendo elas relacionadas a ideias agradáveis como "religiosidade", "caridade", "amor ao próximo", que livraram F. de ser visto, mesmo com provas consistentes, como obscurantista e reacionário. Além do mais, o falso futurismo de F., que adorava Ufologia e dizia que os extra-terrestres iriam "salvar o mundo", o fazia ter uma pretensa projeção de moderno, mesmo usando ternos e peruca cafonas.
Essas bombas foram usadas no momento certo, criando no arrivista, que fazia pastiches literários e literatura fake atribuída a autores mortos, uma reputação divinizada, através de um musculoso jogo discursivo que, em cada incidente, reagia com técnicas de vitimismo e manipulação emocional para produzir consenso e transformar F. num suposto humanista.
São aspectos de pura dominação de linguagem, sempre respaldado em ideias consideradas virtuosas, e que fazem blindar um sujeito que, aos poucos, tornou-se alvo de adoração e fanatismo, embora sua trajetória errante também lembrasse da imagem de "imperfeito", o que não faz muita diferença, pois, no Brasil, como paraíso dos arrivistas, o Céu pode ser reservado também aos medíocres e errantes.
Isso se dá porque o brasileiro médio combina uma mistura de complacências, espertezas, omissões e outros truques, que podem fazer com que pessoas desonestas aproveitassem o contexto da situação para obterem a glória desejada, se tornando pretensas unanimidades, mesmo tendo deixado escândalos no caminho, até porque eles se tornaram uma sujeita escondida debaixo do tapete da memória curta, essa atitude que faz com que arrivistas escondem o passado para não comprometer o sucesso que conquistaram no caminho.
F. também enfatizava sua reprovação do ato de questionar. Ele sempre dizia "não questiones", "não contestes" e, numa inversão retórica, "não censures", pois neste caso ele não reprovava a censura propriamente dita, da ideologia reacionária contra as forças progressistas, mas a rejeição de dogmas conservadores estabelecidos no Brasil, rejeição esta que F. definiu pelo eufemismo de "censura".
Quando F. morreu, após o fim de uma Copa do Mundo de Futebol, ele já estava consagrado. Era considerado "santo", mesmo com imperfeições, como aquele aluno que tira notas medíocres na escola, mas os colegas pedem para ele ser aprovado, passando de ano letivo sem recuperação. É o princípio da complacência, que respalda e blinda figuras dotadas de prestígio religioso.
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Essa história poderia ser muito bem o roteiro de um filme surreal polonês. Mas é, numa narrativa corrida, a vida de Chico Xavier.
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