Chico Xavier foi, sim, o "Olavo de Carvalho" da ditadura militar. Com as devidas diferenças de contexto
PRETENSOS GURUS DE CENÁRIOS SÓCIO-POLÍTICOS CONSERVADORES
Na ditadura militar, quando as religiões evangélicas neopentecostais eram emergentes e o Catolicismo rompia com os militares, o chamado Espiritismo encontrou nesse cenário um terreno fértil para crescer.
Até mais ou menos 1970 ou 1973, a figura de Francisco Cândido Xavier era envolta em escândalos. Apesar de já se desenvolver a imagem de pretenso filantropo, Chico Xavier ainda era um garoto-problema da paranormalidade, e em 1970 acabara de se livrar, através da blindagem de amigos e protetores, das acusações de cumplicidade com a farsante Otília Diogo, desmascarada pelo caso da "Irmã Josefa" e outras fraudes de materialização.
As provas de que Chico Xavier foi mesmo cúmplice vieram depois, quando o fotógrafo Nedyr Mendes da Rocha, no final dos anos 1970, divulgou um livro com fotos dos eventos de "materialização" - que o profissional dizia serem "autênticos" - e, nesses registros, Chico Xavier parecia desenvolto, alegre e atento demais para não ser considerado cúmplice e ser atribuído como "enganado" por Otília.
Mas, a essas alturas, a Rede Globo havia blindado Chico Xavier e transformado ele num pretenso "símbolo de paz e fraternidade", criando uma cortina de fumaça cujo objetivo era justamente salvar a ditadura militar, desviando as atenções do povo brasileiro à pessoa de um suposto pacifista, promovido nos mesmos moldes que o católico inglês Malcolm Muggeridge fez com a megera Madre Teresa de Calcutá, depois desmascarada pelo jornalista, também inglês, Christopher Hitchens.
Chico Xavier foi o guru da ditadura militar. Ele apoiou abertamente o regime dos generais. Compareceu, com gosto, às homenagens da ditadura, coisa que um humanista nunca faria, por se recusar a compactuar com os opressores. Chico era contra o ódio e a violência, mas serviu aos opressores.
Chico Xavier ainda por cima caluniou os amigos do falecido Jair Presente, atribuindo como "bobagem da grossa" a desconfiança que esses jovens, que conviveram com o saudoso amigo, tiveram com as "psicografias". E é o "médium" que pedia para os outros "não julgarem quem quer que fosse". Como diz o ditado: "Faça o que eu digo, não faça o que eu faço".
O papel de Chico Xavier na ditadura militar foi o de Olavo de Carvalho no governo Jair Bolsonaro. Um pretenso guru, um suposto pensador esotérico, místico, surreal. Chico Xavier acreditava em alienígenas, e a prosperidade humana era sempre um privilégio alienígena, tanto que em toda sua obra o "médium" sempre dizia para os sofredores extremos suportarem calados as desgraças e tragédias. Só faltou Chico Xavier ser convidado pelos torturadores a fazer extrema-unção dos presos políticos. A ditadura adorava o "médium".
DIFERENTES CONTEXTOS
Evidentemente, há claras diferenças de contexto entre Olavo de Carvalho e Chico Xavier. O próprio Olavo fez um comentário contestando o caso Humberto de Campos, ignorando que a atividade fake de Chico Xavier está de acordo com os delírios do astrólogo e dublê de filósofo, bastante identificado com as fake news. Eis o que Olavo disse a respeito:
"Há coisas que só acontecem no Brasil. Humberto de Campos foi um escritor menor, mas de algum sucesso no seu tempo como poeta e cronista. Quando ele morreu, o médium Chico Xavier publicou alguns livros dizendo que os tinha recebido do além, por psicografia do falecido. A família do escritor processou o médium, exigindo direitos autorais, o que literalmente faria de Humberto de Campos aquilo que Machado de Assis denominava "não um autor defunto, mas um defunto autor". A Justiça, obviamente, negou o pedido".
Se bem que essa declaração não deixa claro se Olavo considerava as "psicografias" verdadeiras ou falsas. Ele apenas questionou a negação do processo judicial, dado por um juiz suplente, João Frederico Mourão Russell, depois conhecido jurista, que em 1944 atuou na 8ª Vara Criminal do Distrito Federal (então o Rio de Janeiro). Gabriela Hardt e Carolina Lebbos que o digam.
Russell achou a ação judicial "improcedente" e ainda cobrou custas advocatícias à viúva de Humberto, Catarina Vergolino de Campos. Sete anos depois, em 1951, Catarina morreu, e, seis anos após o óbito, Chico Xavier armou um evento que misturava culto doutrinário e Assistencialismo para seduzir o cético filho de Humberto, que tinha o mesmo nome e atuava na televisão. Humberto Filho acabou caindo na armadilha e passou a admirar, ingenuamente, Chico Xavier.
A ditadura militar tinha uma narrativa e um modus operandi muito agressivo, porém mais organizado e disciplinado - pela perspectiva militar - , portanto, se comparado ao governo Jair Bolsonaro, é um discurso bem mais sofisticado. É certo que o governo Bolsonaro seria apoiado por Chico Xavier, que apenas lamentaria "seus excessos", mas evidentemente a ditadura militar seria considerada melhor pelo "médium", pelo grau de disciplina determinado pelo regime.
Chico Xavier servia como uma "cortina de fumaça" usada pela ditadura militar e pelo poder midiático associado para anestesiar os brasileiros. A ditadura estava em crise, é só orar com Chico Xavier e apreciar as "cartas mediúnicas" - uma farsa feita para distrair a multidão com cartas fake atribuídas a mortos comuns - , um modismo sensacionalista montado para distrair as pessoas religiosamente beatas e fazer o "espiritismo" brasileiro crescer como religião.
Isso era um meio estratégico que envolveu muitos interesses. Envolveu o crescimento da Rede Globo, usando um ícone religioso supostamente ecumênico, Chico Xavier - a TV Bandeirantes preferia apostar em José de Paiva Netto, da LBV, em horário arrendado - para neutralizar a ascensão de pastores eletrônicos como os "bispos" Edir Macedo e Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares).
A ditadura apostou em Chico Xavier como um suposto guru, um pretenso pacifista, feito para anestesiar o povo e impedir que houvesse a luta contra o regime militar. Através do discurso ultraconservador de Chico Xavier - cujo conservadorismo muitos têm medo de admitir hoje - , se pregava que a "bonança" era um benefício externo no tempo e no espaço, seja na "vida futura", no "mundo espiritual" ou na "próxima encarnação".
A ideia de Chico Xavier é sempre propor aos sofredores aguentarem desgraças na vida presente. Nunca reclamar, nunca questionar, apenas se dedicando à prece. O complicado é quando, no momento de servidão - Chico Xavier defendia valores análogos à "reforma trabalhista" de Michel Temer e Jair Bolsonaro - , a pessoa que trabalhar demais tenha que dividir sua mente entre a execução de uma tarefa difícil e uma prece para Jesus. E ainda mais com a cabeça cansada e sobrecarregada.
Evidentemente, Chico Xavier tinha problemas mentais, a exemplo de Olavo de Carvalho (que era classificado de "louco" até pela filha), e isso se confirma em entrevista dada ao renomado jornalista Mauro Santayana, na Ilustrada da Folha de São Paulo de 11 de julho de 1982:
"Meu pai estava querendo internar-me em um sanatório para enfermos mentais (...). Devia ter suas razões: naquela época me visitavam (...) também entidades estranhas perturbadoras", foi o que disse o próprio Chico Xavier na ocasião, manifestando compreender a decisão de seu pai.
No entanto, Olavo de Carvalho não é sutil no seu discurso histérico e rancoroso. Ainda que ranzinza, Chico Xavier usava um aparato "amoroso" no seu discurso, embora suas "lindas mensagens", se observadas com atenção, não possuem um milésimo da beleza a que são atribuídas. Elas são apenas um amontoado de trocadilhos e pregações moralistas retrógradas, que nem possuem serventia para a vida das pessoas.
Há várias diferenças de contexto. Olavo de Carvalho criticando Chico Xavier, sem saber que os dois são produtos de uma mesma confusão mental que atinge milhares de brasileiros, que não sabem discernir o que é lógico e o que é místico, o que é moderno e o que é conservador, o que é medieval e o que é futurista.
Chico Xavier é apenas uma expressão mais organizada desse Brasil esquizofrênico, que agora têm medo de pôr em xeque sua figura supostamente iluminada, e, agora, uma parcela de seus partidários, só para agradar a opinião pública, alega somente que "ele também errou muito". Mas isso é um artifício para tentar inocentá-lo, num contexto de banalização dos erros humanos.
A verdade é que a imagem "adorável", seja "santificada ou imperfeita", de Chico Xavier, foi um legado da ditadura militar. Se os brasileiros adoram o "médium", deveriam prestar muita atenção sobre a forma como começaram a desenvolver essa adoração extrema. Deveriam refletir sobre si mesmas e por que elas acolheram um mito formatado pela ditadura militar, um religioso ultraconservador de ideias medievais.
Dessa forma, essas pessoas saberão como foram manipuladas, seduzidas, guiadas pelo "bombardeio de amor". E saberão como a confusão de ideias fez muitos progressistas acolherem um "médium" que rejeitava o senso crítico. A reflexão deveria ser feita para conhecer os vícios e contradições ocultos naqueles que insistem em continuar adorando Chico Xavier.
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