A recente crise envolvendo o "espiritismo" brasileiro parece repetir a crise de 40 anos atrás, quando o roustanguismo, corrente que se baseia nas ideias do livro Os Quatro Evangelhos, de Jean-Baptiste Roustaing, atingiu seu ponto mais crítico.
Sabe-se que Roustaing, o sinistro advogado de Bordéus, havia lançado o referido livro originalmente em três volumes em que ele alegava ter usado uma única médium para receber as mensagens dos quatro evangelistas (Marcos, Mateus, Lucas e João) e outras figuras bíblicas.
O livro supostamente "complementava" a obra de Allan Kardec e dele diferia pela ênfase nas ideias religiosas, com uma narrativa que parece imitar a Bíblia e, na prática, trazia uma abordagem do Espiritismo que fugia dos conceitos lógicos do codificador de Lyon.
Roustaing foi "descoberto" no Brasil por alguns dirigentes "espíritas", como Adolfo Bezerra de Menezes, o Dr. Bezerra idolatrado por seus seguidores, e depois de algum tempo ganhou edição brasileira nas mãos de Guillon Ribeiro, o mesmo que "domesticou" os livros de Kardec.
Durante muito tempo a Federação "Espírita" Brasileira preferiu Roustaing a Kardec e, no Estatuto da FEB, a leitura de Os Quatro Evangelhos era considerada obrigatória, algo que permaneceu até mesmo nas diretrizes determinadas pelo Pacto Áureo, em 1949.
Mas mesmo na década de 1940 começava a haver polêmica sobre a obra de Roustaing, por causa de dois pontos: o Jesus "fluídico", que acreditava que Jesus nunca passou de um fantasma materializado, e os "criptógamos carnudos", vermes, plantas e micróbios que seriam reencarnação de humanos infratores.
Isso causou um grande escândalo nos bastidores do "espiritismo", mas seus dirigentes, espertos, já tinham uma carta na manga para contornar qualquer crise. O "coringa" da situação foi um caixeiro de Pedro Leopoldo chamado Francisco Cândido Xavier, um católico fervoroso mas que era visto de forma negativa pelos católicos da região porque falava com o espírito de um padre.
O excêntrico Chico Xavier mantinha contatos com o jesuíta Manuel da Nóbrega, que se tornou o espírito Emmanuel. É o mesmo padre reacionário que conduzia o Catolicismo de sua missão jesuíta de forma enérgica, por vezes habilidosa, por outras bastante grotesca.
Chico Xavier foi designado pela FEB para escrever livros e "abrasileirar" o roustanguismo, sob a ajuda de editores da federação e consultores literários que prestavam serviço à entidade. Chico atribuía aos livros a autoria de personalidades mortas diversas, das quais a única hipótese passível de ser verdade é que Emmanuel teria realmente ditado os livros produzidos até meados dos anos 1960.
Com Chico Xavier, as ideias de Roustaing foram adaptadas na sua essência, tirando apenas os aspectos mais polêmicos. E Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, que por um tendencioso equívoco atribuiu-se à autoria de Humberto de Campos (a obra destoa do estilo deste falecido escritor), tornou-se uma alternativa ao polêmico Os Quatro Evangelhos.
Mesmo assim, Roustaing era defendido pela cúpula da FEB, pelo fato de que sua obra corresponde à tendência do "espiritismo" brasileiro de assimilar dogmas e ritos da Igreja Católica. Era uma forma de evitar o cientificismo de Allan Kardec, considerado "complicado" e "científico demais" pelo "movimento espírita".
As polêmicas, no entanto, tornaram-se fortes, porque ao longo da trajetória da FEB haviam grupos que reivindicavam as bases doutrinárias kardecianas, a princípio a partir de figuras como Afonso Angeli Torteroli, e depois através de José Herculano Pires, Deolindo Amorim e outros.
Isso causava uma série de brigas e debates que em muitos momentos causavam escândalos e ameaçavam a reputação da federação. Escândalos de prováveis fraudes cometidas por Chico Xavier alimentavam também as polêmicas.
O auge da crise se deu em 1973, quando houve até notícia de uma tradução ainda mais grosseira dos livros de Kardec, que levaria a deturpação às últimas consequências. Chico Xavier deu apoio entusiasmado, mas Herculano Pires denunciou a farsa numa emissora de rádio e, com o escândalo causado, Xavier tentou mudar de opinião.
A supremacia da FEB - que decidia as coisas sem consultar as federações regionais - também agravou a crise, sobretudo pela influência de décadas de Antônio Wantuil de Freitas, presidente da entidade nacional durante anos, e que no começo dos anos 1970, já fora do cargo, estava doente, falecendo em 1974.
Francisco Thiessen e um dos membros da cúpula, Luciano dos Anjos, ainda mantiveram firmes no roustanguismo, até que a pressão de seus opositores se intensificou, principalmente com ampla divulgação na imprensa.
Espertos, Chico Xavier e Divaldo Franco, roustanguistas convictos (embora Divaldo dissesse que "não tivera tempo" para ler Roustaing), vendo o barco afundando, forjaram, em diferentes ocasiões, mensagens do dr. Bezerra de Menezes, antigo dirigente da FEB, alegando que "se arrependeu" de ter apreciado a obra de Roustaing.
Segundo essas mensagens, o suposto Bezerra teria "reconhecido" o valor das bases conceituais de Allan Kardec, embora visse no professor lionês não o cientista que debatia o tema da vida espiritual (como era de fato), mas sua forma estereotipada de pedagogo convertido em líder religioso.
Havia até mesmo o apelo para "kardequizar", que soa como uma corruptela de "catequizar", que era a prática educativa dos jesuítas. Portanto, não era um reconhecimento da atividade intelectual de Kardec, mas uma forma de tentar contornar a crise tirando os anéis roustanguianos para preservarem os dedos da FEB. E as mobilizações em torno do "novo espiritismo" vieram a partir de 1975, após o fim da "Era Wantuil".
E, a partir daí, o "espiritismo" passou a seguir diretrizes que se conhecem hoje. Do roustanguismo entusiasmadamente defendido, restou as diretrizes católicas já adaptadas por Chico Xavier. Por outro lado, a tão alardeada fidelidade a Allan Kardec nunca passou de uma demagogia que toma como base as traduções que, excetuando a de Herculano Pires, deturpam o pensamento do pedagogo francês.
Criou-se então um "espiritismo" que fingia ter recuperado as bases kardecianas, mas que se mantinha firme no seu religiosismo de inspiração católico-medieval. Continuaram as "mentiunidades", falsas mediunidades que têm como objetivo fazer pregação religiosa às custas do uso dos nomes dos mortos. Prosseguiu-se também os valores moralistas e outros próprios do conservadorismo "espírita".
Dessa feita, o fim da "Era Wantuil", com o falecimento do antigo dirigente da FEB e o desgaste de seus herdeiros ideológicos diretos, não significou o abandono completo do roustanguismo. Antes tudo permanecesse na mesma, apenas o nome de Roustaing passou a ser escondido e visto como um "palavrão".
Por outro lado, Allan Kardec passou a ser alvo mais frequente de bajulações e até mesmo de interpretações distorcidas e equivocadas de seu pensamento, e as fraudes feitas sob o manto do Espiritismo continuaram plenas, apenas dentro de uma conduta "mais elegante" e "equilibrada", sempre a abafar irregularidades que, denunciadas, gerariam novos escândalos, como os de hoje.
Daí que os chefes "espíritas" querem reviver 1975, se aproveitando da crise provavelmente para liquidar desafetos sob o pretexto de "praticarem mal o Espiritismo". É, mais uma vez, o momento da cúpula da FEB criar uma "nova limpeza" para assim manter apenas aqueles que são dotados de muito prestígio e poder. Kardec continua tão abandonado quanto antes.
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