A cada dia se revela, aos poucos, a personalidade reacionária de Francisco Cândido Xavier, cujas ideias retrógradas não são meras "opiniões pessoais" que não tenham sido aplicadas doutrinariamente. Pelo contrário, a obra doutrinária de Chico Xavier é o suprassumo do pensamento ultraconservador, em muitos casos de fazer gente como Olavo de Carvalho e Silas Malafaia ficarem de cabelos em pé.
Vejam o sentido dessa frase, a ser entendida sem paixões religiosas:
"Sobre a Terra, tudo é ilusão, tudo passa, tudo se transforma de um instante para outro. O que conta é que guardamos dentro de nós, tudo mais há de ficar com o corpo, que se desfará em pó.
Devemos aceitar a chegada da chamada morte, assim como o dia aceita a chegada da noite - tendo confiança que, em breve, de novo há de raiar o Sol!...".
Deixem de lado algumas palavras melífluas porque essa "linda mensagem" é um paiol de bombas semióticas tão perigosas que entendemos por que certos semiólogos não se encorajam a desvendá-las. É porque são bombas que explodiriam por todos os cantos, ferindo muita gente boa. Imagine Chico Xavier desmascarado em praça pública. É como se uma bomba atingisse um condomínio que só tenha seguidores do anti-médium mineiro.
Afinal, o que está em jogo nesta frase é o sentido da "ilusão": ou seja, a vida na Terra é "ilusória", e, sendo uma "ilusão", é inútil viver para transformar a matéria bruta em serventias sociais. Daí que é compreensível não podermos ser Paulo Gustavo, Glauber Rocha, Renato Russo, Leila Diniz, Santos Dumont, Mário de Andrade.
Nós vibramos para que pessoas geniais morram cedo, enquanto facínoras e picaretas, pelo menos em tese, vivem longamente. É surreal, num Brasil apegado a feminicidas - como se a masculinidade tóxica matasse somente o machista bonachão e inofensivo - vemos jornalistas como Ricardo Boechat, Paulo Henrique Amorim, Gilberto Dimenstein e Artur Xexéo morrendo de tragédias comuns, e Pimenta Neves, com diabetes crônica, câncer na próstata, doença no coração e possível falência nos órgãos, ninguém imagina que, com 84 anos, ele esteja a pouquíssimos metros do caixão.
O nosso sistema de valores quis jogar as revelações da revista Manchete de 1977 e quis conceber um Doca Street com "histórico de atleta", às custas de eufemismos (quimioterapia virava "pneumonia no pulmão e mal de Alzheimer, "dislexia"), e tentaram até dizer que o assassino de Ângela Diniz, um dos homens mais ricos da sociedade paulista, "não estava doente" quando sofreu o infarto fatal em 2020. Outro eufemismo: Doca não estava era com Covid-19. Mas a cara de luto de seus familiares nas colunas sociais já indicava que só o câncer ele enfrentava há mais de três décadas e meia.
Nos apegamos a tudo que for supérfluo, decadente ou sórdido. Há uma tristeza hipócrita da sociedade média quando um Paulo Gustavo morre, todo mundo disfarçando o sorriso ao dizer que "é mais um anjo bom no céu". Egoístas, esses beatos enrustidos e seu "espiritualismo de Facebook" agora recebem indiferentes à notícia de que o intérprete de Dona Hermínia estaria escalado para um primeiro filme dramático como protagonista (Paulo fez um papel não-creditado em Os Mercenários (The Expendables)).
Para eles, tanto faz. Como se a próxima encarnação fosse igual à última. Para eles, tanto faz um Paulo Gustavo morrer, mas se no lugar dele tivesse morrido o Guilherme de Pádua? Será que teriam essa mesma tristeza resignada? Muitos se chocaram com a morte de Doca Street por infarto, achavam que ele iria comemorar os 50 anos de seu assassinato correndo a São Silvestre com 92 anos de idade.
A vida não é ilusão. É verdade que temos um limite de vida, a morte do corpo é inevitável um dia, mas devemos lembrar que é justamente esse prazo, estimado em possíveis 80 anos, que faz a vida valer mais e não podemos jogar fora esse tempo. Morrer cedo é lindo somente para beatos religiosos à procura de anjos para idolatrar, mas isso não tem a menor graça e as mortes prematuras de pessoas com valor são sempre lamentáveis.
Ilusão quem vive é o criminoso que tenta abafar os efeitos do seu crime com a impunidade e a vida abusiva de um ato sem remorsos verdadeiros. Quem se ilude é um feminicida como Marcelo Bauer, de Brasília, que matou a facadas uma ex-namorada em 1987. Ou um John Sweeney, renomeado John Patrick Maura, que matou em 1982 a atriz Dominique Dunne e tornou-se um dos raros casos de impunidade por feminicídio nos EUA.
Bauer e Maura brincam de "reencarnação" dentro da própria encarnação e eles prolongam a ilusão de suas vaidades pessoais, do orgulho que não pode ser ferido e é apenas restaurado por um falso arrependimento que não envolve suas consciências, uma covardia moral que os fazem querer restaurar suas vidas, numa abusiva ressocialização que faz o crime de morte que causaram um ato sem importância. Talvez um retorno antecipado à "pátria espiritual" lhes possa devolver a realidade.
A "ilusão" da vida na Terra faz com que os moralistas religiosos medievais, que dominam o imaginário brasileiro médio, achem que a vida material é uma mera sentença criminal, que a vida não tem valor a não ser nascer, sofrer umas desgraças e depois morrer. Ou pagar pela morte prematura as façanhas admiráveis que procura fazer em prol da humanidade.
Já os sórdidos em geral costumam prolongar a vida à toa, apenas para transformá-la num ritual de sustento das vaidades pessoais, vivendo de "turismo" simbólico - ou literal, como um covarde Marcelo Bauer que foi viver na Dinamarca e na Alemanha - e apenas bancando o "bonzinho" quando as situações estão favoráveis, vivendo do bem bom e conquistando novas mulheres que os homens mais dignos têm muita dificuldade em conquistar.
Quanto à mensagem de Chico Xavier - só considerado "sábio" diante do padrão do brasileiro médio que, ignorante e desinformado, teve coragem de eleger ou a omissão de deixar ser eleito Jair Bolsonaro em 2018 - , é inútil que ele tenha que adoçar seu recado perverso com palavras dóceis ("o que guardamos dentro de nós") ou as famigeradas comparações com a natureza, que ele sempre usou para disfarçar com tons paternais a sua impiedosa apologia ao sofrimento humano.
REENCARNAR NÃO GARANTE CONTINUIDADE DA VIDA ANTERIOR
Cada encarnação é única e existe a dificuldade extrema da pessoa que morre cedo em retomar o caminho interrompido. As perdas são irreparáveis e, até agora, não se viu um escritor que, na nova encarnação, tivesse conseguido completar aquele livro que, com a morte, deixou inacabado na encarnação anterior.
Quando uma pessoa desencarna, se ela reencarna num prazo médio de três a cinco anos entre uma encarnação e outra, ela vai levar 20 anos para ter as condições humanas plenas para realizar o que havia sido interrompido com a morte. Ao nascer, sua consciência se encontra "adormecida" por cerca de dois anos e muita coisa acontece nesse período.
Quando começa a perceber o mundo, com dois ou três anos de idade, a compreensão fica latente e mesmo que o espírito não queira perder tempo e, antes dos dez anos de idade, possa ter uma bagagem intelectual de uma pessoa de 25 anos, as condições sociais não lhe são possíveis, incluindo o desejo de praticar as brincadeiras de criança e as relações hierárquicas que a criança tem com os adultos.
Somando, digamos, uns cinco anos entre o fim da encarnação anterior e o começo da atual, a pessoa leva cerca de 25 anos para retomar o caminho perdido, em tese com todas as condições sociais exigidas para tanto. Só que a sociedade se transforma e dificilmente essas condições permanecem as mesmas.
Um exemplo hipotético pode se dar ao Newton Mendonça, o pianista de Bossa Nova que, com Tom Jobim, fez "Desafinado" e morreu aos 33 anos em 1960. Digamos que Newton tenha reencarnado não no prazo de cinco anos (1965), mas mais tarde, em 1978, e ele decide novamente ser pianista (lembrando que nenhum espírito se sente obrigado a repetir a profissão na encarnação anterior, podendo até abandoná-la se for sua necessidade).
Vamos dar ao hipotético Newton Mendonça reencarnado o nome de Plínio Souza Neto. Plínio se tornará pianista porque foi sua escolha e ele demonstrava seu talento desde que recebeu as primeiras aulas particulares (que, no âmbito espiritual, serviriam para "abrir a mente" após o "adormecimento" da memória reencarnada) e repetiu as habilidades que mostrava na encarnação anterior.
Só que Plínio não encontra mais um cenário musical instigante como o da Bossa Nova e nem mesmo o da MPB dos anos 1960 ele encontrava uma cena vibrante. O que resta de MPB e Bossa Nova são eventos saudosistas que soam como festas de despedida. O que vai sobrar, para ele, então? Ser pianista e arranjador de crooners canastrões como Alexandre Pires, Ivete Sangalo e Chitãozinho & Xororó? Ou virar trampolim para figuras decadentes como o cafoníssimo compositor e ccantor Michael Sullivan?
Reencarnar não garante a continuidade da encarnação anterior, e são muitas as dificuldades para retomar o caminho perdido, até porque em duas décadas uma estrada com paisagem de bosque pode se transformar numa área cheia de grandes edifícios. Coisas mudam e, em duas décadas, uma pessoa pode até gerar um filho, ou seja, cuidar de uma outra vida além da sua.
SOLIPSISMO E IMPUNIDADE
Devemos também desconfiar de Chico Xavier, contrariando o que seus lunáticos seguidores espalham nas redes sociais de que "tudo o que ele diz é verdade". A mentira personificada em obras literárias pioneiramente fake, lançadas mais de 80 anos antes de o mundo inteiro denunciar as fake news, mostram o quanto o "médium" seria a última pessoa que alguém possa se arriscar em dar um pingo de crédito, mesmo admitindo risco de erros.
Afinal, quando ele fala que a vida na Terra é uma "ilusão", além de manifestar um desprezo completo à vida humana - ele só admitia o "valor da vida" quando as pessoas adotassem um padrão de vida comparável com a Pedro Leopoldo de 1910-1932 - , ele pregava para que esqueçamos as questões humanas que, certamente, iriam comprometer o próprio "médium".
Essa ideia remete à visão solipsista de Chico Xavier, que queria que o Brasil permanecesse em padrões rurais de vida, supostamente "espiritualistas" e "desapegados à matéria". Difícil falar em desapego se o próprio Chico Xavier é objeto de apego deslumbrado - atualmente disfarçado na desculpa da "admiração sadia a um homem bom, mas imperfeito" - de seguidores e simpatizantes dos mais diversos tipos.
Chico Xavier é a pessoa que mais contrariou o pensamento de Allan Kardec em toda a história e trajetória da Doutrina Espírita em todo o mundo. Suas práticas apresentam elementos que eram reprovados em O Livro dos Médiuns, desde a tutela de espíritos autoritários (que a obra kardeciana apontava ser influência de espíritos inferiores) até pretensas profetizações (a Codificação definiria a "data-limite" como ato de mistificação e inferioridade moral).
Literatura fake - que também contraria a Codificação, por se enfeitar de "nomes ilustres" ou "dignos de afeição" para oferecer mistificação religiosa - , reacionarismo que o fez defender tanto a ditadura militar que recebeu condecoração e espaço para palestra na Escola Superior de Guerra (que não daria jamais um benefício desses para quem não colaborasse com o poder ditatorial), são coisas graves da obra de Chico Xavier, cuja revelação causaria "mil dissabores".
Então, o que ele faz? Diz que a "vida na Terra é uma ilusão". Tudo para evitar que se investigue ele, que basta "perdoar", passar pano nos erros, e deixar tudo para lá. A ideia dessa frase é evitar a investigação, o raciocínio, qualquer ação que comprometesse a reputação de "fada-madrinha" que Chico Xavier mantém no imaginário popular.
Por isso é que essa frase, "Sobre a Terra, tudo é ilusão" - entendida como "a vida na Terra é uma ilusão" - , é na verdade, um apelo para a impunidade de Chico Xavier, porque, sendo a vida "uma ilusão", é "inútil" investigar os podres do "médium", assim como é "inútil" combater as injustiças e o sofrimento humano.
Em outras palavras: pelo pensamento de Chico Xavier, nunca seremos mais do que meros animais louvadores, para os quais só se destina a eternidade nas colônias espirituais, numa rotina igrejista insossa e sem muita serventia, a não ser para práticas meramente paliativas do Assistencialismo de baixos resultados sociais e a adoração, vazia e, essa sim, ilusória, à figura imaginária de Deus.
O próprio Chico Xavier, ele sim, não passa de uma grande ilusão. E quem se agarrar a ele, ainda que por poucos minutos, cai em perdição.
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