Muitos ficam chocados quando se contestam totens associados à ideia consagrada de caridade e filantropia. Curiosamente, a gente vê o lado real dessas pessoas "tão bondosas": em maioria, elas reagem como egoístas, raivosas e rancorosas que ainda são, presos nas suas zonas-de-conforto da fé deslumbrada e do fanatismo religioso.
Ao divulgar que Francisco Cândido Xavier e Divaldo Franco fizeram muito pouco pelo próximo, portanto, muito menos que suas consagradas imagens sugerem, muita gente fica chocada e reage com fúria, irritada e deprimida, tomada dos piores sentimentos. Afinal, que energias elevadas eles julgam ter? Eles não conseguem ser bons e evoluídos por conta própria.
O que está em jogo é que muitas pessoas se aprisionam a uma ideia formal de caridade, solidariedade, fraternidade e amor ao próximo. São apenas ideias materialistas de humildade, estereótipos de desapego, abnegação, resignação e doação que se prendem aos clichês moralistas relativos à caridade.
Mesmo a ideia de fraternidade se subordina à ideia medieval de sermos forçadamente iguais, eliminarmos nossas individualidades e nossa diversidade. E a filantropia defendida é sempre aquela que não incomoda as estruturas das verdadeiras desigualdades que a fé religiosa deixa passar, com a complacência diante dos privilégios e abusos dos poderosos e dos algozes em geral.
O Brasil se mostra muito atrasado. Paciência, o país só tem 515 anos de existência, não passou por dramas que as nações europeias passaram, o que pode nos fazer apostar que uma Grécia no fundo do poço tenha maior capacidade para dar a volta por cima do que o Brasil festivo e triunfante que "apenas" vive "momentânea crise".
Daí que o nosso país se prende a uma ideia medieval de fraternidade, solidariedade e amor ao próximo, preso ao igrejismo e ao donativo elitista. Nosso "ativismo" se perde no maniqueísmo de Black Blocs e Revoltados On Line, de um lado, e as esmolas e inócuos cursos de alfabetização, de outro.
Surpreendemos em todo ano com muitas pessoas que, supostamente modernas, se demonstram profundamente conservadoras. Pessoas que parecem modernistas, alternativas, rebeldes, vanguardistas, acabam exibindo sempre algum ponto retrógrado no Brasil. Seja defendendo a degradação cultural do povo pobre ou a intervenção militar, a consciência das pessoas de uma forma ou de outra vai "descendo até o chão".
Dentro desse contexto, Chico Xavier é considerado "ativista" e "progressista" por coisa nenhuma. Isso porque no Brasil existe o chamado malabarismo discursivo, em que as pessoas tentam parecer mais avançadas e corretas do que realmente são, e ficam usando todo tipo de desculpa para adotar posições tão retrógradas.
E isso quando não há a tripla truculência de políticos obscurantistas como o deputado Eduardo Cunha, jornalistas reacionários como Reinaldo Azevedo e o fascismo circense dos trolls da Internet, a defender de modismos da mídia a preconceitos raciais, que causam apreensão de como será o futuro de nosso país.
Embora sabemos que o Catolicismo propriamente dito tenta sobreviver e crescem as chamadas "seitas evangélicas" no país, o "espiritismo", com sua retórica "racional", faz parte dessa "santíssima trindade" do obscurantismo da fé que busca dividir o tráfico de influência no país.
Daí que até mesmo entre pessoas libertinas há um certo conservadorismo ideológico. Movimentos de bregalização cultural, que se dizem defensores da causa LGBT e se autoproclamam libertários, defendem o duvidoso ofício da prostituição como algo "progressista", sem saber dos históricos de violência, machismo e criminalidade que cruzam os caminhos das prostitutas aqui e ali.
Isso é conservador porque os "animados ativistas", que cobrem suas personalidades direitistas com as bandeiras das esquerdas - há muitos assim entre a intelectualidade "cultural" mais reacionária, mas parasita de verbas da Lei Rouanet - , querem que as mulheres pobres sejam prostitutas a vida inteira, impedindo-as de buscar um trabalho melhor que não lhes dê só salário, mas dignidade.
É muito simplório dizer que o ativismo social é manter os pobres na pobreza, apenas "minimizando" seus efeitos. Se a intelectualidade cultural mais empenhada se comporta assim, se irritando quando sambas autênticos voltam a bater nos corações dos pobres moços, imagine quem vê a fraternidade e a solidariedade sob a miopia da fé religiosa!
A IDEOLOGIA DA "CARIDADE"
Criam-se paradigmas os mais inócuos e inofensivos de caridade, que apenas ajudam um pouco, sem romper com a desigualdade e a injustiça. Os próprios ideólogos da "caridade", como o próprio Chico Xavier, adepto da Teologia do Sofrimento, apelam para que aceitemos resignados o arbítrio dos algozes e dos dominadores, na esperança de que eles "pagarão pelo que fazem um dia".
Isso mostra o que é essa ideia de fraternidade que faz as pessoas dormirem tranquilas. Afinal, é uma ideia de filantropia e amor ao próximo que não trazem grandes transformações, apesar de tanta retórica nesse sentido. São apenas ações paliativas que minimizam o sofrimento mas não fazem as pessoas saírem definitivamente da miséria.
Afinal, os donativos que consistem em ser o carro-chefe dessa ideologia, sejam roupas, material de limpeza e alimentos para os pobres são apenas benefícios provisórios que se consomem. Se eles se esgotam, os pobres voltam à situação inferior que viveram antes. A caridade não teve resultado definitivo, porque foi apenas provisória, daí sua falta de mérito.
Há também os cursos de alfabetização e outras matérias escolares que apenas ensinam a ler e escrever, a fazer contas e respeitar as pessoas, mas não a pensar ativamente sobre a realidade em volta. Em muitos casos, a "brilhante educação" tem como preço o proselitismo religioso. "Você vai ler, escrever e até se virar na vida, mas tem que seguir nossas crenças", diz, não necessariamente de maneira assumida.
E realmente por que essa caridade não é transformadora, por mais que consiga tirar as pessoas da pobreza? Para responder a isso, podemos enumerar alguns aspectos da ideologia da "caridade" restrita a paradigmas religiosos para entender a situação:
1) As atividades em prol do próximo são geralmente paliativas ou de restrita eficiência.
2) Elas não representam ameaça ao sistema de desigualdades que causa esse mesmo quadro de pobreza, "melhorando" sem melhorar de fato.
3) A caridade se fundamenta sempre em valores fundamentados no conformismo e na resolução parcial e amena de problemas apenas de extrema gravidade.
4) Há uma exploração publicitária da imagem dos pobres, como uma multidão de gente submissa que deve obter melhorias relativas sem que ultrapassem sua pobreza simbólica, de gente resignada, ingênua e inócua, sempre defendida pela ideologia religiosa.
5) O sistema de relações sociais continua sendo desigual, e para quem sofre basta adotar uma postura de resignação e submissão dócil, com batalhas apenas limitadas ao que o "sistema" permite para "vencer na vida", dentro dos estereótipos trazidos pela meritocracia.
6) A caridade paliativa causa uma sensação enganosa de que as pessoas estão ajudando, e disfarça a insegurança moral dos indivíduos que não costumam ser dispostos a ajudar de maneira ampla e efetiva, e até constroem suas vaidades atraves da caridade pouca (em quantidade e qualidade) que exercem.
E AS "CARIDADES" DE CHICO XAVIER E DIVALDO FRANCO?
Chico Xavier ajudou pouco, dentro dos limites que o conservadorismo religioso permite para a filantropia. Nada que o pudesse ser visto realmente como ativista e transformador. Doações de cestas básicas, algumas visitinhas a obras de caridade, e a "caridade de cabra-cega" que é deixar de receber dinheiro pela venda dos livros e outros produtos associados.
Por que "caridade cabra-cega"? Porque o "beneficiado" simplesmente não vê o dinheiro chegar em suas mãos. Ele deixa de recebê-lo e só. Isso não corresponde, necessariamente, a um ato de generosidade, mas apenas a renúncia de receber algum dinheiro.
Além disso, o dinheiro era destinado para a cúpula da Federação "Espírita" Brasileira, o que não é um ato de caridade, em si. Até porque os líderes são poderosos e sabemos que instituições assim também acumulam bens materiais.
Um exemplo é que o poderio do então presidente Antônio Wantuil de Freitas, "padrinho" religioso de Chico Xavier e seu parceiro na produção de vários livros, sobretudo os que levam (de forma fútil) o nome de Humberto de Campos, foi alimentado por essa doação de cachê e fez a FEB ter seu domínio cada vez mais centralizador, discriminando até mesmo as federações regionais coligadas.
Algumas aparentes caridades de Chico Xavier foram paliativas, apenas minimizando os efeitos extremos da pobreza. Mas nada que transformasse o povo brasileiro num padrão de Primeiro Mundo. Por outro lado, algumas das outras alegadas caridades de Chico Xavier se revelaram bastante traiçoeiras e oportunistas.
Daí, por exemplo, as psicografias bastante duvidosas. É até estranho que Chico Xavier, que dizem ter feito também psicofonia, seja pouco conhecido nessa atividade. Ela apenas é defendida pelo viúvo de Irma de Castro, Meimei, o já falecido Arnaldo Rocha, que alega ter registrado psicofonias entre 1954 e 1956.
Curiosamente, também, é estranho que o Chico Xavier das supostas psicografias "reapareça" agora em psicofonias, via Ariston Teles, e não por supostas psicografias, atividade mais típica de seu mito, até por causa das tais misteriosas e risíveis "senhas".
A crueldade está em torno da usurpação dos nomes dos mortos, não só através da fraude de cartas e livros que mostram apenas o estilo do "médium" e, no caso das cartas, só mostram sua caligrafia pessoal, como por dois aspectos traiçoeiros que a medida acaba trazendo para as famílias dos falecidos.
Primeiro, é o prolongamento das tragédias familiares, que poderiam ser sofridas na intimidade de seus lares, mas são exploradas pelo sensacionalismo midiático e pelo exotismo que a glamourização dessas tragédias, sobretudo a de jovens de boa aparência, inspira no grande público.
Segundo, é o fato de que o caráter mediúnico é bastante duvidoso, porque as mensagens têm sempre o estilo do "médium" e a caligrafia dele, o que torna incerto o caráter de consolação de mensagens divulgadas dessa forma.
Chico Xavier era moralista, ultraconservador, católico heterodoxo em método - afinal, era um paranormal - , mas bastante ortodoxo em ideias. Era devoto de Nossa Senhora da Abadia e Santa Teresa de Lisieux, uma das ideólogas da Teologia do Sofrimento.
Por outro lado, Chico Xavier se promovia através dos mortos, levianamente evocados, em mensagens "espirituais" que mostram divergências sérias à personalidade original de cada falecido. Humberto de Campos, que havia sido intelectual e literato, mais parecia um padre católico nas obras atribuídas a seu espírito.
A caridade de Divaldo Franco também não foi muita. Além de compartilhar da mesma psicografia e psicofonia irregulares de Chico Xavier, seu trabalho filantrópico, que chegou a ser comemorado por uma reportagem do Fantástico, da Rede Globo (logo ela), na Mansão do Caminho, não foi mais do que meramente inexpressivo.
Isso não é maledicência de gente invejosa. É só fazer os cálculos. A Mansão do Caminho, surgida em 1952, alega ter ajudado cerca de 160 mil pessoas, em toda sua existência. Isso requer um cálculo, comparando esse dado com o da população de Salvador e o tempo de existência da instituição.
Primeiro dividimos o número 160.000 por 63, correspondente ao tempo de atividade da Mansão do Caminho em 2015. Dá algo em torno de 2.540, equivalente à média de beneficiados por ano. Depois, comparamos com o número de habitantes de Salvador, cerca de 2,9 milhões, que arrendondamos para 3 milhões devido às irregularidades do êxodo rural, já que as cidades do interior baiano costumam creditar como seus habitantes cidadãos que delas emigraram para a capital baiana.
Isso significa fazer a prova dos nove, colocando 3.000.000 como 100% e 2.540 como "x" e o resultado obtido dá 0,08%. O que indica que Divaldo Franco só beneficiou menos de 1% da população de Salvador, número bastante inexpressivo que, em escala mundial, é sinônimo de nada. Ser considerado o maior filantropo do mundo dessa maneira é completamente ridículo.
A caridade existe de outras formas, e é fora da religião que existem exemplos mais belos, em que a solidariedade ultrapassa os limites do sofrimento resignado e da submissão devota. O Método Paulo Freire é um exemplo, em que o educador mineiro ensina alfabetização mas também com estímulo ao raciocínio crítico, à mobilização comunitária e até uma introdução ao trabalho jornalístico.
Personalidades como o poeta Vinícius de Moraes, Oscar Niemeyer e Mário de Andrade também fizeram muita caridade, apoiando projetos em prol da cultura brasileira e das causas democráticas. Uma caridade de cabeça erguida, sem as amarras da fé. Isso é que muitos não conseguem perceber, apegados a paradigmas religiosos.
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