Vivemos uma época em que as elites detentoras de algum privilégio social acham que podem fazer o que querem. Numa retomada ultraconservadora, pessoas cujos privilégios variam do domínio tecnológico ao prestígio religioso se viram, de repente, na plenitude de seus abusos, como se nada pudesse detê-las.
São pessoas que até se envolvem em escândalos, muitas vezes cabeludos, veem a encrenca bater à porta de sua casa ou de seu ambiente profissional, mas aparentemente dão a volta por cima, seja com algum jogo de cintura, seja com alguma represália.
Estamos vendo exemplos assim no governo Michel Temer, que empurra medidas impopulares e prejudiciais à população, enquanto põe seus integrantes da "equipe de notáveis" em cargos estratégicos ou até em cargos no Judiciário. Nunca um senhor de 77 anos se comportou como se fosse um menino teimoso e mimado (por sinal, pela grande mídia) de sete anos.
Recentemente, o ex-governador do Rio de Janeiro, Wellington Moreira Franco, citado inúmeras vezes em atividades de corrupção por delatores da Operação Lava Jato, e já definido pelo antigo rival Leonel Brizola (1922-2004) como "gatinho angorá", porque passa "de colo em colo" (ou seja, muda o padrinho político conforme as conveniências), conseguiu não só assumir o cargo de ministro da Secretaria-Geral da República, como adquiriu foro privilegiado, só podendo ser julgado pelo STF.
A propósito, temos também a possibilidade de Alexandre de Moraes ser ministro do Supremo Tribunal Federal, mesmo com todo o acúmulo de inconvenientes. Foi constatado que ele não tem um pós-doutorado que havia sido declarado, porque ele foi registrado por engano. E, o que é mais grave, o "ilustre jurista" também é acusado de plagiar, em seus livros, um teórico espanhol, Francisco Rubio Llorente.
Isso lembra Francisco Cândido Xavier. Ele havia plagiado trechos de várias obras literárias. Em Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, um livro pretensamente de "História e de Espiritualidade", há um capítulo que copiou um outro inteiro de um livro, pasmem, cômico, O Brasil Anedótico, que o alegado autor Humberto de Campos - que nunca escreveria as barbaridades que atribuem à sua autoria espiritual - havia produzido em vida.
Chico Xavier, sabemos, fez o que queria. De um pastichador de livros - tarefa que ele não fazia sozinho, mas com uma equipe de editores e redatores da FEB - , ele virou algo perto de um Deus, um "dono da verdade" e um "proprietário do Brasil". Seus defensores fazem o possível para manter ele no pedestal, ainda que haja desentendimentos mil, como uns achando que ele era profeta e outros pensando que ele era reencarnação de Allan Kardec (o que é um absurdo sem tamanho).
Ele fez o que queria porque gozava de prestígio religioso. Era um beato católico ortodoxo - sim, Chico era devoto da Igreja Católica Apostólica Romana, rezador de terços, adorador de imagens, rigoroso espectador de missas católicas - e entrou no Espiritismo pela porta dos fundos, graças a uma ajudinha do presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas.
A ascensão de Chico Xavier tornou-se tão descontrolada que hoje é um mito gigantesco no qual se torna difícil questionar. Ele poderia não entender de Espiritismo e sua mediunidade teria sido mais limitada do que muitos acreditam, mas ele entendia de hipnose e de técnicas de manipulação da mente, sendo habilidoso na técnica da falácia chamada Ad Passiones, ou "apelo à emoção".
No Ad Passiones, usa-se todo tipo de apelo emocional para seduzir a opinião pública. É uma tática de controle mental mais perigosa que a coerção, porque pode dominar o inconsciente. Chico Xavier foi um praticante de estratégias como o vitimismo ou coitadismo, reagindo em silêncio e com poses e depoimentos de tristeza quando era duramente questionado.
Graças a isso, o Espiritismo foi empastelado no Brasil. O legado que Kardec concebeu com muito trabalho e dor - seus últimos livros foram escritos quando ele sofria de aneurisma - foi simplesmente desmoralizado, reduzido, no Brasil, a um sub-catolicismo marcado pela permissividade e por uma falsa imagem de filantropia, feita mais para ajudar o benfeitor do que o povo carente.
Aí, faz-se o que bem entender. Se você é um novelista ruim, não mande seu roteiro para a televisão, mas adapte suas novelas medíocres com alguma temática sobrenatural, preencha as páginas com alguma lição moralista, use um mero prenome ou nome composto para um suposto espírito (Verônica ou Pedro Lúcio, por exemplo), e vai vender como água. Se disser que o lucro do livro será "para a caridade", melhor ainda. Blindagem na certa.
Da mesma forma, se plagiar e realizar pastiches literários ou falsificar quadros imitando (e muito mal) os estilos de vários pintores mortos, basta correr para adquirir uma casa velha, botar uns pobres dentro e sair por aí fazendo palestras com palavras bonitas sobre família, amor e compaixão, dentro daquele igrejismo que conhecemos e, pronto. Ninguém mexe com quem fizer tudo isso. Os juízes só chegarão perto de você só para lhe dar um abraço e pedir um livro autografado.
OS VALENTÕES DIGITAIS
Se você tem dinheiro, fama, poder político, poder de liderança em geral, porte de arma, prestígio religioso, diplomas, etc etc, você acha que faz o que quer. As elites surtaram e hoje despejam seus piores preconceitos sociais, sob os quais não medem escrúpulos em cometer crimes graves. Há poucos dias, um publicitário, ex-militar e saudosista da ditadura militar matou a filha só por causa de discussões tolas sobre herança.
O pior é que existe a ilusão da impunidade, da imunidade e, o que é pior, a ilusão de que tais pessoas podem cometer abusos e se manter em popularidade. Se você é do tipo que falsifica quadros e plagia livros e corre para um "abrigo institucional" da religião "espírita", ninguém mexe com você e, quando há um escândalo, nada que um Ad Passiones não possa resolver. A carteirada religiosa ainda arranca lágrimas de muita gente e cala a boca de muito questionador de vontade mais débil.
Até quando se tira a vida de alguém a pessoa que acha que pode fazer o que quer a ponto de homicidas ricos acharem que não podem adoecer pela forte pressão dos efeitos de seus atos. Acham que podem não só ficarem impunes como se acham no direito de uma vida "cor-de-rosa".
Acham que suas vítimas podem morrer até na mais tenra juventude, mas se revoltam quando um médico lhes alerta do risco de morrerem de repente antes dos 60 anos. Não querem morrer sequer antes dos 90! E, quando não há jeito, suas mortes não podem ser reportadas pela imprensa.
O egoísmo humano ou as demais ilusões que vão do luxo da alta sociedade à falsa modéstia do prestígio religioso - tão perigoso por direcionar a vaidade humana aos "tesouros do céu", desejando avidamente não o luxo terreno, mas as extravagâncias no "porvir" - consistem no espírito do tempo que faz com que valentões usem a Internet para intimidar e desmoralizar os outros.
Troleiros, hackers e cyberbullies, ou mesmo falsos denunciadores - que primeiro criam um fake para cometer atrocidades sob o nome da vítima para depois denunciá-la como se fosse um "delinquente digital" - constituem o cenário de horror que reside nas redes sociais e transforma computadores e telefones celulares em "terras sem lei".
Recebemos denúncias de gente sendo vitimada por blogs de ofensas e calúnias. Há até um feito por um busólogo da Baixada Fluminense que, dizem, foi criar uma página de "comentários críticos" para se vingar de uma abortada ascensão política, porque o cara fazia um curso de Informática para jovens carentes.
O valentão copiava os textos e fotos de suas vítimas e, para cada parágrafo, fazia um "comentário crítico", ao mesmo tempo jocoso e ofensivo. Quando era contrariado, ele ainda ia para redes sociais, fóruns e até petições de Internet, para despejar comentários ainda mais agressivos. Ele tinha um aliado mais jovem que fazia fakes personificando o mesmo tipo de "tarado gay".
O valentão dos "comentários críticos" ainda ia para a cidade dos outros fazer ameaças, a pretexto de tirar fotos para sua página pessoal (quando ele assumia a identidade de um "equilibrado" busólogo). Ele não encontrava os desafetos, mas era observado de longe por milicianos que controlam serviços de vans e que faziam ponto num estacionamento próximo ao terminal rodoviário.
Mas se o valentão era observado por gente da pesada, sua página de horrores era também denunciada pelo SaferNet, página na Internet que recebe denúncias de crimes virtuais. O valentão atualiza sua página, capricha nos comentários mais "picantes", e, dentro de seu quartinho não sabe que suas páginas estão sendo lidas por funcionários da Polícia Federal, que não raro têm até o Protocolo de Internet (registro digital do computador usado pelo internauta) do valentão.
Muitos valentões das redes sociais ou da blogosfera têm suas páginas ofensivas com algum registro policial. Isso é fato. Mas não é qualquer um que pode alertar os brutamontes eletrônicos sobre isso, já que a resposta que estes dão é "KKKKKKKKK" e, irritados com o alerta, são capazes de atualizar os blogs com mensagens ainda mais ofensivas e ameaçadoras.
Vivemos uma época em que a Justiça começa a aprender essa nova realidade, de que o status quo dominante não é garantia de imunidade, impunidade e prestígio. É claro que temos estruturas sociais velhas e os chamados privilegiados de toda ordem, do dinheiro à religião, passando pela fama ou até pelo prestígio "doméstico" da turma de amigos ou apreciadores de um hobby, estão demonstrando visões cada vez mais reacionárias, violentas e socialmente preconceituosas.
Desde que o feminicídio foi considerado crime hediondo e até o "espiritismo" brasileiro foi pivô de um crime de recusar atendimento a uma vítima de estupro, fatos diversos desafiam a compreensão de juristas e outros especialistas sobre os abusos humanos protegidos por alguma vantagem social.
Até mesmo na Justiça se observa uma atuação irregular, tendenciosa e nem sempre benéfica à sociedade. Permite-se que o presidente da República, Michel Temer, lance propostas que ameaçam gravemente os direitos sociais dos brasileiros, tão trabalhosamente adquiridos. E isso num país em que a maior corporação de Comunicação, as Organizações Globo, são controladas por irmãos sonegadores de impostos e donos de fortunas descomunais.
O maior desafio no Brasil é se desapegar das antigas condescendências movidas pelas conveniências sociais e adquirir coragem para, se preciso, punir ou limitar os privilégios de pessoas consideradas "admiráveis". Derrubar totens é algo que muitos sentem dificuldade, sobretudo quando é um parceiro de hobby, o "maioral da turma" ou o ídolo religioso de práticas cheias de irregularidades.
Fazer uma grande revisão de valores e deixar de lado a aura divinizada dos privilegiados da Terra é um imperativo que juristas e outros especialistas devem assumir, mesmo que seja sob o preço de derrubar totens antes vistos como sagrados ou pessoas antes vistas como "legais". Não se pode considerar pessoas com tais qualidades se elas cometem abusos que vão contra a ética, o bom senso, a lógica humana, a coerência e, sobretudo, o respeito humano.
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