Para começo de conversa, não somos contra o futebol. O futebol, em si, não é um mal, porque é uma diversão, um entretenimento, um lazer. Seu mal está na supervalorização que, em regiões metropolitanas como as do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, atinge um fanatismo em níveis preocupantes.
No Rio de Janeiro, então, a coisa chega a ser tirânica. Em vez do igual direito de pessoas gostarem ou não de futebol, há o fanatismo a níveis intolerantes, com a relativa concessão de que patrões flamenguistas de empregados vascaínos, por exemplo, possam conviver harmoniosamente.
O que preocupa o Rio de Janeiro, que sofre uma decadência nem sempre aceita pelos próprios cariocas - que acham as denúncias um exagero e só esperam um quiosque enferrujado em Copacabana cair e um tiroteio ocorrer nas proximidades para sentir que o mito da Cidade Maravilhosa realmente acabou - , é que o fanatismo pelo futebol é uma espécie de moeda corrente das relações sociais.
Se você não for torcedor de qualquer um dos quatro times - Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo - , suas chances de conviver com a sociedade, no Rio de Janeiro, diminuem drasticamente. Infelizmente o futebol é usado pelo assédio moral nos ambientes de trabalho e, para quem não curte futebol, as chances de perder amigos e perder o emprego são muitíssimo altas.
Isso é terrível. E faz com que muitos que não compartilham desse narcisismo de cariocas que, em suas zonas de conforto, acham que a decadência do Estado do Rio de Janeiro é "mimimi" de quem está "fora da festa" - claro, não são eles que ficam feridos por quiosques caídos, bueiros voando e tiroteios no meio da rua - , torcerem por derrotas sucessivas do futebol carioca, para ver se, pelo menos, os torcedores possam ter um mínimo de humildade.
A violência dos torcedores de futebol, aquela propriamente dita, é muito conhecida, de brigas de torcidas, tiroteios e práticas de vandalismo. Nem precisamos comentar. Mas existe também a outra violência, tão terrível e ameaçadora, embora aparentemente não tão agressiva em termos físicos.
Essa violência é a da barulheira dos torcedores, toda vez que um time realiza o gol. No Fla X Flu de ontem, a gritaria da vizinhança foi extrema, nas residências do Grande Rio. E o que essa "alegria" de pessoas berrando em sons guturais tem a ver com violência?
Simples. É a violência contra o sossego do outro. Há pessoas que moram longe de seus locais de trabalho, que precisam dormir cedo e acordar cedo, chegando tarde em casa só para fazer refeição, descansar por uma hora e depois dormir, porque irá acordar no começo da madrugada para fazer o café e enfrentar trens e ônibus lotados e encarar um trânsito infernal.
São pessoas que geralmente não possuem um emprego estável, o salário é sofrível mas necessário (melhor tê-lo que não ter um centavo sequer nas mãos) que têm que enfrentar patrões estressados e impacientes, e nem conseguem curtir a vida porque perdem boa parte do dia em congestionamentos, em uma jornada cansativa de trabalho, na qual terão que desafiar seu sono para ter um mínimo de rendimento possível, pelo menos, para permanecer alguns meses a mais no emprego.
E aí temos o "livre direito" de torcedores, nas altas horas da noite, gritarem feito uns dinossauros em euforia, toda vez que o respectivo time carioca realiza um gol. Reclamar contra isso é tido como "preconceito", como tudo que vem do Rio de Janeiro, pois a "boa sociedade" carioca reage às denúncias de decadência com um choroso "não é bem assim". Para todo efeito, até os peidos das mulheres-frutas do "funk" representam a boa fase da cultura carioca. Não se pode contestar.
A decadência do Rio de Janeiro é tal que o Estado foi responsável direto pelo cenário político degradante em que vivemos, com o presidente Michel Temer cortando gastos públicos e fazendo o Brasil "sair da crise" às custas do agravamento da miséria popular.
Temer é paulista, mas teve o caminho aberto por um carioca, o deputado Eduardo Cunha, eleito por uma sociedade carioca que se dizia "sedenta por moralidade" e colocou na Câmara dos Deputados um vândalo político com ideias retrógradas que o meio jurídico e político tiveram dificuldade ou até desinteresse em tirá-lo do poder, pelo menos antes de Dilma Rousseff perder definitivamente o mandato.
Paciência. Se os cariocas não gostam de serem criticados, que então resolvam os erros cometidos. Eliminem a pintura padronizada nos ônibus, substituam o "funk" pela Bossa Nova, melhorem os supermercados com a agilização de operadores de caixa e repositores de estoques, ponham rádios de rock feitas por quem entende de rock, diminuam o número de fumantes no Grande Rio e, acima de tudo, façam os torcedores de futebol respeitarem o silêncio dos que necessitam desesperadamente de silêncio para dormirem bem e acordarem para um novo e duro dia de trabalho.
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