Grande mania os brasileiros, sobretudo os cariocas, verem religião em todas as coisas, panteisando qualquer arbitrariedade só porque ela é decidida por gente rica, letrada, poderosa ou com visibilidade. Ficam endeusando qualquer um que, "lá de cima" - leia-se escritórios ou colegiados acadêmicos - decide qualquer bobagem prejudicial e nas mídias sociais o pessoal apoia babando.
Claro, este é o país que endeusa Chico Xavier com todas as confusões que ele aprontou na vida, incluindo apoio a fraudes diversas, publicação de pastiches literários e até mesmo prática de falsidade ideológica - vá dizer que aquelas bobagens atribuídas a Humberto de Campos seriam realmente escritas por ele - e no entanto o anti-médium ainda é unanimidade ferrenha entre muitos brasileiros.
Funciona assim. Impõe-se uma medida que não é lá muito benéfica para o interesse público. "Não muito benéfica" é eufemismo para coisa que é nociva e poucos admitem que é. Mas aí, lançada essa medida, é publicado um linque no Facebook e todo mundo curte e, o que é pior, só tem gente elogiando a medida, de forma até muito entusiasmada.
"Gostei". "Demais". "Essa medida vai bombar!". "Não vejo a hora dela ser implantada". "Também não. Já estou olhando meu relógio". "Essa medida, com certeza, vai beneficiar (sic) a população", são alguns dos comentários mais comuns.
Claro, muitos desses internautas são como cães Rottweiler que pulam felizes quando o dono lhes oferece o almoço. Nesses momentos eles são cãezinhos fofos, alegres, animados, dá até para fazer carinho neles. Mas quando alguém contraria, eles viram uma fera e lhe "convidam" para uma festa (sem aspas) numa boate do Recreio dos Bandeirantes, antes da qual lhe lincharão na entrada.
Dá medo essa mania de religiosizar e divinizar as coisas, muito comum no Brasil, mais comum ainda no Rio de Janeiro. Gente tão intolerante que perde tempo criando blogues ofendendo quem não segue a "lógica do rebanho", o que dá o tom de seu reacionarismo doentio que faz Reinaldo Azevedo parecer o Dennis Pimentinha.
Isso dá tanto medo que, enquanto uns pitboys davam surra em jovens estudantes e trabalhadores vindos do Jacarezinho só porque eles queriam ir às praias de Copacabana e Ipanema, como faziam antes, sempre pacificamente, e uns milicianos arrancavam passageiros do ônibus 474 (prestes a ter fim de linha no Centro) para dar surra até em dona-de-casa, uns idiotas de Niterói espalharam panfletos de uma franquia local da Klu Klux Klan.
Daí para criarem uma sucursal do Estado Islâmico é um pequeno pulo. E já era assustador o reacionarismo de muitos "fascistas de web" naquela comunidade "Eu Odeio Acordar Cedo" que davam piti - no sentido que os Revoltados on Line e o deputado Jair Bolsonaro dão piti - quando criticavam até mesmo uma simples gíria (como aquela gíria idiota "balada", inventada por Luciano Huck, mais conhecido como Tucano Huck, e por seu amigo Tutinha da Jovem Pan).
E aí vemos a tal da mobilidade urbana, que no Rio de Janeiro implantou tardiamente um projeto de sistema de ônibus da ditadura militar. E isso mostra o quanto é divinizar as coisas, principalmente com o Estado do Rio nas mãos de uma elite autoritária, burocrata e tecnocrata (alguns simplificam dizendo "tecnoburocrata") que pensa ainda viver nos tempos do "milagre brasileiro" do general Médici.
Sim, estamos falando de Eduardo Paes, Luiz Fernando Pezão, Sérgio Cabral Filho e seus amiguinhos. Um tecnocrata que virou secretário municipal de Transportes e hoje é subsecretário de Planejamento, Alexandre Sansão, parece um Benito Mussolini de óculos. Um Carlos Roberto Osório que mais parece um sargento do Exército à paisana. Um José Mariano Beltrame que banca o xerife com pinta de paizão de sitcom sobre famílias atrapalhadas.
Esse pessoal parece estar governando como se não estivéssemos sob o governo da presidenta Dilma, mas sim durante uma transição entre o general Emílio Médici e o colega Ernesto Geisel. Fazem da cidade do Rio de Janeiro uma Disneylândia para ricos e turistas. Estimulam o consumismo das classes abastadas (da média alta para a mais alta) e deixam os pobres "na mão". Adotam medidas à revelia da consulta popular e das leis.
Nem parece que Eduardo Paes era bebezinho na Era Médici. Ele se afina muito com o "espírito da época". E seu tenebroso sistema de ônibus, cheio de medidas cruéis vendidas como "racionais", entra para mais uma trágica etapa de eliminar a ligação de ônibus entre Zona Norte e Zona Sul.
O atual titular da pasta municipal de Transportes, o boyzinho Rafael Picciani, jura de pés juntos que esse esquema não tem relação com os arrastões de Copacabana (puxados pelos valentões ricos, diga-se de passagem) e que ele só quer "otimizar" o sistema de ônibus. Otimizar obrigando as pessoas a pegarem mais de um ônibus? Fala sério!
O inspirador desse processo todo, o arquiteto Jaime Lerner, que foi prefeito de Curitiba e governador do Paraná, era um figurão da ditadura que impôs uma lógica para o sistema de ônibus que está caduca e, em muitos aspectos, obsoleta, mas que as autoridades insistem, até mesmo na marra, que se trata não só de uma "novidade", como é algo "futurista" e até "tendência mundial".
Muito desse sistema de ônibus apresenta medidas completamente caquéticas, dignas do tempo do carro de boi, mas são disfarçadas com o falso futurismo dos BRTs (trenzinhos sobre rodas que parecem foguetes), coisa que só existe no Brasil, porque lá fora é outra coisa, não é o BRT que faz sucesso no resto do mundo, é o BRT que é caricatura um tanto brutal do que se foi feito lá fora bem antes do primeiro "plano Lerner".
Não por acaso os maiores defensores desse "padrão Jaime Lerner" são busólogos patronais que ficam com raivinha quando colegas de hobby não concordam com estes pontos de vista. Têm chilique, fazem trolagem, achando que estão com a palavra final e depois, quando vão para a rua bancar os valentões, reclamam por que a "máfia das vans" andou "paquerando" eles.
E aí o que temos? Motoristas acumulando função de cobrador, sob a desculpa do bilhetamento eletrônico. O que está por trás dessa "modernidade"? Demissões em massa de rodoviários e trabalho escravo dos motoristas, tão oprimidos profissionalmente que adoecem em pleno volante e causam acidentes devido à sobrecarga cansativa de trabalho, causando mortos e feridos.
E o que temos mais? Redução de frotas de ônibus em circulação, sob a desculpa de maior rapidez e fluidez no tráfego e fim de sobreposição de itinerários. O que está por trás dessa "otimização" do sistema? Ônibus cada vez mais lotados, mesmo os BRTs, passageiros chegando atrasado ao trabalho, perdas de horas no ir e vir e alto risco de demissões devido aos atrasos constantes.
E mais ainda? Fim de linhas de ônibus diretas e longas, sob a desculpa de agilizar o esquema através da divisão de linhas em "alimentadoras", "troncais" e "interbairros". O que está por trás dessa "racionalização" de percursos? Gente estressada pegando mais de um ônibus e sendo obrigada a pagar mais de uma passagem (o que "devora" boa parte do salário), porque o Bilhete Único dura pouco e, em muitos casos, sua validade se esgota quando o primeiro ônibus ainda está em percurso.
E mais, mais? A tal pintura padronizada nos ônibus, que amarra diferentes empresas de ônibus na camisa-de-força de consórcios e tem a desculpa de evitar poluição visual e disciplinar o sistema com a adoção de uma mesma pintura para cada consórcio. E o que temos? Passageiros confusos na hora de pegar um ônibus e a corrupção político-empresarial correndo solta porque não dá mais para identificar com facilidade e imediatismo uma empresa de ônibus, já que tudo ficou igual.
Portanto, são medidas nefastas, que deveriam ser combatidas se o povo tivesse consciência de seu poder de mobilização, pelo menos mandando e-mails em massa para a imprensa, para ela tomar conhecimento de sua indignação. Reclamar pelas costas nos bares da vida não dá para influir em coisa alguma, porque os protestos se tornam natimortos depois de um copo de cerveja.
E assim o sistema de ônibus, como muita coisa que acontece na vida de cariocas e fluminenses, se torna uma decadência vertiginosa, que só os alienados que ainda pensam que o Rio de Janeiro vive uma belle èpoque - esses risonhos bobos-alegres que a gente vê muito nas ruas - e que acha piada até tiroteio em área da UPP, e que só dão conta da realidade quando se tornam vítimas dela.
E o endeusamento de Jaime Lerner, que tem um plano maligno contra as linhas de ônibus intermunicipais para o Rio de Janeiro, tem como preço caro a degradação do cotidiano das pessoas, a criação de complicadas situações que não há desculpas de "racionalidade" que possam justificar.
Pois, sob o reino do "deus Lerner", medidas erradas são criadas de propósito, transtornos previstos acontecem, e as autoridades ficam fazendo beicinho prometendo estudar e resolver os problemas e fazer "reajustes constantes".
Se "otimizar o sistema de ônibus" é assim, então o sentido de "otimizar" passou a ser outro: o de catástrofe e sofrimentos intensos. O carioca sofre por aceitar tudo, passivo, confiante nos "deuses" inventados pelo diploma, pelo poder político, pelo sucesso na mídia e pelos superávits de mercado.
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