"Solta o cano que não cai". "Pois só espirre, tá, que não cai". As duas inocentes frases nada significam, a não ser o cacófato que se sugere nos contextos mais recentes, que as transformam em "só tucano é que não cai" e "pois só espírita é que não cai".
O "espiritismo" brasileiro tornou-se uma religião aberrante. Começou fugindo dos ensinamentos de Allan Kardec mas depois fez o possível de, sem abandonar a herança de J. B. Roustaing, dar a falsa impressão de que é "rigorosa e absolutamente fiel a Kardec". De dissimulação em dissimulação, o "espiritismo" que aqui temos tornou-se uma religião tão retrógrada quanto as "neopentecostais" e, em certo sentido, pior do que estas, pois essas seitas pelo menos não fazem desonestidade doutrinária.
Se na política vemos que o PSDB nunca é punido na Justiça e recebe uma proteção relativamente inabalável por parte da mídia hegemônica, o que faz com que seus políticos, definidos como "tucanos", sejam socialmente blindados, na religião temos uma realidade ainda maior, com uma blindagem que é feita até pela imprensa de esquerda.
O caso recente de Divaldo Franco é ilustrativo. Ele ofereceu, por decisão própria, consciente de seus atos apesar dos 90 anos (afinal, ele demonstra ter bastante lucidez e ainda faz palestras), a edição paulista do evento Você e a Paz - uma turnê de pregações religiosas mistas ("espiritismo", catolicismo e protestantismo) que culmina em todo dia 19 de dezembro no Campo Grande, em Salvador - para homenagear João Dória Jr. e permitir que ele lance um estranho complexo alimentar.
Divaldo provou, com sua atitude, ser anti-kardeciano, pois nem de longe adotou o espírito de firmeza que marcou o pedagogo francês que o "médium" diz ser seu "mestre". Divaldo, sem sequer exigir alguma comprovação de exames técnicos sobre a "farinata", aceitou tudo de bandeja e deixou Dória ostentar a camiseta do evento e do nome do "médium".
Isso poderia ter se tornado um dos maiores escândalos em torno do "movimento espírita", mas o silêncio da imprensa evitou e deixou Divaldo Franco escapar de tudo pela porta dos fundos, enquanto o único religioso a pagar pela má reputação da "farinata" foi o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer.
Mas tudo bem que esse silêncio parta da Rede Globo, de O Globo, da Veja, da Folha de São Paulo, do Estadão. O que não dá para entender é que esse silêncio se estende para Carta Capital, Jornal GGN, Diário do Centro do Mundo, Conversa Afiada (de Paulo Henrique Amorim, filho do espírita autêntico Deolindo Amorim), Caros Amigos e Brasil 247.
Quando falaram de algum religioso envolvido, só citaram dom Odilo. Se esqueceram do vínculo de imagem que representou a camiseta usada por João Dória Jr., que podia muito bem não ter usado essa blusa, e comparecido ao evento usando um terno e uma camisa de colarinho comum. Mas Dória usou a camiseta do Você e a Paz, citando o nome de Divaldo Franco, e isso não foi atitude de moleque usando camiseta de banda, aquilo foi um compromisso de vínculo de imagem.
Ficamos com dificuldade de explicar o que levou a chamada mídia alternativa, que geralmente faz contraponto à mídia hegemônica e não receia derrubar "vacas sagradas" da chamada "sociedade civil", se elas cometem algum erro grave ou possuem algum ponto sombrio em suas vidas, a se silenciar em torno de Divaldo Franco.
O silêncio que a mídia de esquerda dá aos "médiuns" é surreal, porque o "espiritismo" é religião protegida pela Rede Globo de Televisão, seu conteúdo moralista é bastante severo, apostando na criminalização da vítima perante infortúnios por ela sofridos, e os "espíritas" são abertamente contra o aborto em todo tipo de hipótese, até estupro e risco à saúde da gestante, o que mostra o quanto essa religião adota pautas bastante contrárias ao esquerdismo.
"FICA, TEMER"
Em vez disso, os esquerdistas fazem coro à blindagem que a mídia hegemônica faz dos "médiuns" e embarca em tolices como dizer que é "coincidência" o "médium" goiano João Teixeira de Faria, o João de Deus, aparecer ao lado de Michel Temer, porque aparentemente o curandeiro também é "amigo" do ex-presidente Lula.
Amigos, amigos, negócios à parte. Se bem que as pessoas superestimam essa "amizade". João de Deus sempre se promoveu às custas de famosos de qualquer ideologia, embora manifestasse maior identificação pessoal com personalidades conservadoras. Aparentemente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se declara amigo de Lula e nem por isso FHC é considerado uma figura realmente progressista, ele que é um membro eminente do PSDB e um dos fundadores deste partido.
O que deve chamar a atenção é ver João de Deus acolhendo Michel Temer mesmo quando este se encontra numa posição decadente e sem representatividade popular. Temer é aprovado somente por 3% dos brasileiros. O presidente é associado a pautas retrógradas, como a recém-implantada reforma trabalhista, que na prática aposta na deterioração do mercado de trabalho.
Mas ninguém dá bola. Por mais que os "espíritas" estejam alinhados a políticos de direita decadentes, eles são aceitos pelos esquerdistas sem qualquer motivo. Nem o homofóbico Carlos Vereza, direitista de carteirinha, quando foi se encontrar com Michel Temer, chamou a atenção no que se refere à sua opção religiosa. Ele até foi questionado, mas o "crachá" de "espírita" foi jogado para debaixo do tapete.
Os "espíritas" estão associados a práticas conservadoras. Seu modelo de "caridade" é o Assistencialismo, embora oficialmente se fala em Assistência Social. Isso porque é uma "caridade" que, na prática, ajuda muito pouco e só traz realizações pontuais ou provisórias, servindo mais para a propaganda pessoal dos "médiuns".
O maior "médium" da doutrina igrejeira é Francisco Cândido Xavier, falecido há 15 anos no dia em que os brasileiros (não são quaisquer uns, mas Ricardo Teixeira, João Havelange e aliados) estavam felizes. Chico Xavier era uma espécie de Aécio Neves da religião, aprontando muito na vida, mas saindo impune de qualquer enrascada.
Descoberto pelo presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, Chico Xavier começou fazendo pastiches literários, criando uma armação sensacionalista chamada Parnaso de Além-Túmulo. Os poemas claramente fogem dos estilos originais dos autores mortos creditados, e até uma carta de Xavier a Wantuil, divulgada por uma "médium" chiquista, Suely Caldas Schubert, revelou por acidente a farsa: o livro era realmente um pastiche literário.
Observações mostram que Chico Xavier, a partir de Parnaso e depois ao longo de várias obras, teria feito os pastiches literários com a colaboração de terceiros. A maior parte era em colaboração com Wantuil e a equipe de redatores de Reformador, periódico da FEB, com a consultoria de especialistas em Literatura brasileira.
Há rumores de que Chico Xavier, depois de 1981, mais ou menos, não escrevia mais os livros, sendo eles escritos pela equipe editorial da FEB. A essas alturas, Wantuil já havia falecido há um bom tempo, e o "médium", doente mas sobrecarregado com os compromissos de um popstar religioso, já não tinha mais condições sequer de colaborar com textos, apenas deixando que seu nome fosse creditado, desde que os textos se aproximassem do estilo de mensagens que ele divulgava antes.
Chico Xavier se livrou de qualquer enrascada, causava confusões, cometia irregularidades graves, mas driblava como um Aécio da religião. Ninguém pegava Chico Xavier. Ele saiu impune da acusação de pastiches literários, e, no caso de Humberto de Campos, quando o "médium" foi para o banco dos réus, ele saiu-se impune por conta da famosa seletividade da Justiça.
Chico Xavier ainda conseguiu seduzir o filho de Humberto, de mesmo nome, num embuste religioso, um evento "filantrópico" em 1957, no qual se usou uma famosa técnica de manipulação mental das pessoas, o "bombardeio de amor" (simulação de profunda afetividade que forja um ambiente de pretensa intimidade e confraternização) e depois foram apresentadas práticas de Assistencialismo, como a ostensiva caravana na qual se doavam mantimentos que se esgotavam em poucos dias nas mãos dos pobres.
Humberto saiu seduzido pelo clima de "emotividade intensa" e chorou copiosamente, capturado pelo "médium" que lhe sussurrou em falsete, confundindo o rapaz, que, filho do eminente escritor maranhense, trabalhava como produtor de televisão. Humberto chegou a escrever um deslumbrado livro, Irmão X, Meu Pai, desfazendo do antigo ceticismo em relação às supostas psicografias atribuídas ao pai dele.
Foi moleza. Afinal, as obras que levam o nome do "espírito Humberto de Campos" nem de longe lembram a obra original do alegado autor. A obra de Humberto de Campos era culta, bem escrita, descontraída, laica e com narrativa bastante ágil. A do "espírito Humberto" é deprimente, pesada, prolixa, cansativa, deprimente e com um conteúdo igrejeiro de causar crises de vômito, cheirando a medievalismo mofado.
O pastiche é tão grosseiro que nem chega a ter como alvo Humberto de Campos. O pastiche lembra mais o Novo Testamento, como se Chico Xavier tivesse plagiado não Humberto, mas os evangelistas Marcos, João, Mateus e Lucas. O conteúdo católico é tão carregado que nem lembra Humberto, que, até num conto sobre Jesus, presente no livro O Monstro e Outros Contos, de 1932 (mesma época de Parnaso), ele escreveu falando de infância e não de religião.
Mas nisso Chico Xavier passou impune e o prejuízo caiu na obra original de Humberto, que hoje está fora de catálogo, enquanto os livros fake "mediúnicos" continuam livremente nas livrarias. Além disso, Chico Xavier passou imune por muitas enrascadas, seja a ameaça de denúncia pelo sobrinho Amauri (morto em possível "queima de arquivo"), seja a farsa desmascarada de Otília Diogo, na qual o "médium" foi fotografado acompanhando atento os bastidores da armação, mas foi oficialmente creditado como "enganado pela farsante".
Chico Xavier era adorado por Aécio Neves, que na ocasião do falecimento do "médium", escreveu frases de profundo entusiasmo e afinidade de sintonia, que expressam muito mais do que uma formalidade de um político em relação a um famoso falecido:
"Chico Xavier é uma referência única de trabalho e solidariedade não só para os mineiros, mas para todos os brasileiros. Mesmo estando em estágio avançado de sua doença, ele continuava recebendo peregrinos que viajavam para encontrá-lo. Ele será sempre um exemplo de vida e humanidade muito importante. Ele era uma figura muito confortadora para todos, independente da religião de cada um".
E mais:
"Em sua grandiosa simplicidade, ele será sempre uma referência para todos que, de alguma forma, têm responsabilidade pública. Minas, o Brasil, o mundo ficou menor com a morte de Chico Xavier".
Aécio chegou a criar a Comenda Chico Xavier para homenagear personalidades "filantrópicas" e, quando foi encontrada uma mensagem, na casa do senador mineiro, então investigado por corrupção, no qual havia a expressão "CX 2", que depois teria se revelado não "caixa dois", mas pedido de verbas para um "segundo filme" sobre Chico Xavier. Teria sido As Mães de Chico Xavier, por sinal produção da Globo Filmes?
É até gozado que o PSDB, aparentemente, pretende desembarcar do governo Michel Temer num momento em que os "espíritas" se aproximam dele. E Aécio Neves, prepotente no partido, anda desagradando os demais tucanos, ligados ao principal grupo, o paulista (Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin e José Serra), fundador da sigla. Aécio, ao que tudo indica, permanece fiel a Temer, cujo governo instaurado à força em 2016 o senador mineiro idealizou.
Aécio parece tão blindado pelas energias de Chico Xavier que a gente pergunta se o senador mineiro não teve o avô errado. Afinal, a afinidade de Aécio Neves, símbolo maior das traquinagens do PSDB, com o "espiritismo" brasileiro diz muito às forças retrógradas que recebem muita blindagem, criando a situação surreal no Brasil de que uma parcela da sociedade pode fazer o que quer que está dispensada de sofrer os efeitos drásticos de suas más decisões. Triste, isso.
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